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O título acima é meio enganoso, porque não posso considerar-me uma autoridade no uso de papel higiênico, nem o leitor encontrará aqui alguma dica imperdível sobre o assunto. Mas é que estive pensando nos tempos que vivemos e me ocorreu que, dentro em breve, por iniciativa do Executivo ou de algum legislador, podemos esperar que sejam baixadas normas para, em banheiros públicos ou domésticos, ter certeza de que estamos levando em conta não só o que é melhor para nós como para a coletividade e o ambiente. Por exemplo, imagino que a escolha da posição do rolo do papel higiênico pode ser regulamentada, depois que um estudo científico comprovar que, se a saída do papel for pelo lado de cima, haverá um desperdício geral de 3.28 por cento, com a consequência de que mais lixo será gerado e mais árvores serão derrubadas para fazer mais papel. E a maneira certa de passar o papel higiênico também precisa ter suas regras, notadamente no caso das damas, segundo aprendi outro dia, num programa de tevê.

Tudo simples, como em todas as medidas que agora vivem tomando, para nos proteger dos muitos perigos que nos rondam, inclusive nossos próprios hábitos e preferências pessoais. Nos banheiros públicos, como os de aeroportos e rodoviárias, instalarão câmeras de monitoramento, com aplicação de multas imediatas aos infratores. Nos banheiros domésticos, enquanto não passa no Congresso um projeto obrigando todo mundo a instalar uma câmera por banheiro, as recém-criadas Brigadas Sanitárias (milhares de novos empregos em todo o Brasil) farão uma fiscalização por escolha aleatória. Nos casos de reincidência em delitos como esfregada ilegal, colocação imprópria do rolo e usos não autorizados, tais como assoar o nariz ou enrolar um pedacinho para limpar o ouvido, os culpados serão encaminhados para um curso de educação sanitária. Nova reincidência, aí, paciência, só cadeia mesmo.

Agora me contam que, não sei se em algum estado ou no país todo, estão planejando proibir que os fabricantes de gulodices para crianças ofereçam brinquedinhos de brinde, porque isso estimula o consumo de várias substâncias pouco sadias e pode levar a obesidade, diabetes e muitos outros males. Justíssimo, mas vejo um defeito. Por que os brasileiros adultos ficam excluídos dessa proteção? O certo será, para quem, insensata e desorientadamente, quiser comprar e consumir alimentos industrializados, apresentar atestado médico do SUS, comprovando que não se trata de diabético ou hipertenso e não tem taxas de colesterol altas. O mesmo aconteceria com restaurantes, botecos e similares. Depois de algum debate, em que alguns radicais terão proposto o Cardápio Único Nacional, a lei estabelecerá que, em todos os menus, constem, em letras vermelhas e destacadas, as necessárias advertências quanto a possíveis efeitos deletérios dos ingredientes, bem como fotos coloridas de gente passando mal, depois de exagerar em comidas excessivamente calóricas ou bebidas indigestas. O que nós fazemos nesse terreno é um absurdo e, se o estado não nos tomar providências, não sei onde vamos parar.

Ainda é cedo para avaliar a chamada lei da palmada, mas tenho certeza de que, protegendo as nossas crianças, ela se tornará um exemplo para o mundo. Pelo que eu sei, se o pai der umas palmadas no filho, pode ser denunciado à polícia e até preso. Mas, antes disso, é intimado a fazer uma consulta ou tratamento psicológico. Se, ainda assim, persistir em seu comportamento delituoso, não só vai preso mesmo, como a criança é entregue aos cuidados de uma instituição que cuidará dela exemplarmente, livre de um pai cruel e de uma mãe cúmplice. Pai na cadeia e mãe proibida de vê-la, educada por profissionais especializados e dedicados, a criança crescerá para tornar-se um cidadão modelo. E a lei certamente se aperfeiçoará com a prática, tornando-se mais abrangente. Para citar uma circunstância em que o aperfeiçoamento é indispensável, lembremos que a tortura física, seja lá em que hedionda forma — chinelada, cascudo, beliscão, puxão de orelha, quiçá um piparote —, muitas vezes não é tão séria quanto a tortura psicológica. Que terríveis sensações não terá a criança, ao ver o pai de cara amarrada ou irritado? E os pais discutindo e até brigando? O egoísmo dos pais, prejudicando a criança dessa maneira desumana, tem que ser coibido, nada de aborrecimentos ou brigas em casa, a criança não tem nada a ver com os problemas dos adultos, polícia neles.

Sei que esta descrição do funcionamento da lei da palmada é exagerada, e o que inventei aí não deve ocorrer na prática. Mas é seu resultado lógico e faz parte do espírito desmiolado, arrogante, pretensioso, inconsequente, desrespeitoso, irresponsável e ignorante com que esse tipo de coisa vem prosperando entre nós, com gente estabelecendo regras para o que nos permitem ver nos balcões das farmácias, policiando o que dizemos em voz alta ou publicamos e podendo punir até uma risada que alguém considere hostil ou desrespeitosa para com alguma categoria social. Não parece estar longe o dia em que a maioria das piadas será clandestina e quem contar piadas vai virar uma espécie de conspirador, reunido com amigos pelos cantos e suspeitando de estranhos. Temos que ser protegidos até da leitura desavisada de livros. Cada livro será acompanhado de um texto especial, uma espécie de bula, que dirá do que devemos gostar e do que devemos discordar e como o livro deverá ser comentado na perspectiva adequada, para não mencionar as ocasiões em que precisará ser reescrito, a fim de garantir o indispensável acesso de pessoas de vocabulário neandertaloide. Por enquanto, não baixaram normas para os relacionamentos sexuais, mas é prudente verificar se o que vocês andam aprontando está correto e não resultará na cassação de seus direitos de cama, precatem-se.

Esta foi a última coluna escrita por João Ubaldo Ribeiro, que seria publicada no dia 20 de julho

Quando eu era estudante nos Estados Unidos, numa distante década do século passado, tive um excelente professor de Ciência Política, dr. William Bruce Storm. Ficamos amigos e de vez em quando eu ia a seu escritório no campus, onde batíamos papo e ele sempre me ensinava alguma coisa, nem sempre de política. Até hoje, por exemplo, sou um cachimbólogo razoável, porque ele me fez algumas fantásticas palestras sobre cachimbos, que ele pitava sem cessar, inclusive nas aulas, bons tempos. Um dia ele se queixou de que o time de futebol americano da universidade tinha perdido outra vez, parecia que queria acumular uma derrota atrás da outra. Sem conhecer nada de futebol americano, mas querendo responder alguma coisa, comentei brilhantemente que esporte é assim mesmo, um dia se perde, no outro se ganha.

— Son — disse ele — show me a good loser, and I’ll show you a loser.

Botei esse inglês aí porque gosto me lembrar da cara e da voz dele, quando me falou isso, e para quem souber inglês e quiser citar o original. A tradução é “Filho, me mostre um bom perdedor e eu lhe mostrarei um perdedor.” Sofridíssimo torcedor do Vitória, o mais antigo clube de futebol da Bahia e o último a ganhar um campeonato estadual, eu cansei de me prometer, sem nunca conseguir, parar de esbravejar, discutir e até romper com amigos, quando, na decisão e jogando pelo empate, o Vitória fazia um a zero e a gente já começava a comemorar, só que Carlito, um idolatrado centroavante do Bahia, fazia um gol de bunda e outro de joelho, nos últimos 15 minutos do jogo, e o Bahia mais uma vez levava a taça. Tenho sempre que recorrer à lição do professor Storm, para resignar-me à minha condição de péssimo perdedor, que sempre fui.

Claro que, a esta altura, eu não devia mais estar falando sobre a Copa (cartas de reclamação para o editor, por misericórdia). Todo mundo já falou e escreveu tudo sobre a Copa e agora os assuntos são outros, além de eu não entender de futebol e perder todas as discussões no boteco. Mas ainda escrevo sem saber o resultado do jogo de ontem (ontem, sábado, mas não para mim, que escrevo antes) e que pode ter sido outra vergonheira, além de, naturalmente, não ter visto o jogo de daqui a pouco, no qual sou Alemanha, não por qualquer animosidade contra os argentinos, mas em homenagem a meu neto alemão. Ele ainda é bebê, mas vocês precisam ver como chora bem em alemão, é um povo muito adiantado. E — nunca se sabe do futuro — pode ser o primeiro passo para a Alemanha aceitar a imigração de um avô de alemão.

Além disso, há os amigos. Não tenho ido a Itaparica recentemente e, como se diz hoje em dia e creio que é mais chique, não tive participação presencial na repercussão do enxovalhamento de nossas cores realizado no Mineirão. Mas Zecamunista me telefonou.

— Sibéria! — gritou ele — Sibéria! Nos tempos gloriosos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, você sabe muito bem o que acontecia, não sabe? Aquele time soviético que tomou dois a zero do Brasil na Suécia, depois que o famoso cérebro eletrônico deles previu vitória para eles, aquele time, com técnico, massagista e tudo, foi mandado para a Sibéria com passagem só de ida! Foram todos ficar lá na Sibéria, no Baixo Curugustão ou na Alta Eslobóvia, com o rabo gelando pela eternidade e obrigados a ver o dia todo um filme com Garrincha passando e deixando quatro russos estatelados na lama! E isso foi dois a zero, não foi aquela ninhada de ratos do Mineirão, sete a um e você via que os alemães não fizeram mais por constrangimento, podia ser no mínimo uns dezesseis! Você viu, os alemães dançavam uma polcazinha leve até a área brasileira e um perguntava ao outro: Mein Kamaraden, focê quer fazer essa gol? Nein, nein, muita obrigadas, muito gentilische de seu parte, fá focê, por fafor. Ach, nein, enton deischa pro Karl, que ainda non fez a dele, fai lá Karl! No quarto gol, eu pensei que era replay, não dava nem para assimilar, botaram o Íbis em campo, de camisa amarela.

— Mas, Zeca, se bem me lembro, você costumava denunciar o futebol como um anestésico das massas e…

— Não misture as coisas! Isto é uma manobra manjada para desviar o centro da discussão, eu estou falando sobre uma catástrofe pública! Seu amigo Toinho Sabacu…

— Que é que houve com Toinho?

— Não houve nada, só que ele teve de reforçar os remédios para a pressão e ficou dois dias sem sair de casa, aqui muita gente passou mal e quiseram até jogar pedra na televisão de Manolo. Em vez de escrever as besteiras de costume, você devia botar no jornal um artigo sério contra a Lei da Palmada. Vai ver que foi por causa dela que a família Scolari degringolou. Se Felipão pudesse dar umas palmadas em seus meninos, uns puxõezinhos de orelha no vestiário ou meia dúzia de bolos, botar de cara para um canto da sala, mandar escrever duzentas vezes, com boa letra, “de agora em diante só vou chorar na cama”, essas coisas, talvez a hecatombe não tivesse acontecido, esses irresponsáveis em Brasília fazem as leis e não medem as consequências. Eu estive pensando e agora tenho certeza de que os brasileiros devem esquecer futebol e se concentrar naquilo em que nós somos bons. Você viu o inglês que dizem que faturou duzentos milhões, vendendo bilhetes desviados? Mas que pretensão, a desse inglês. Roubo de duzentos milhões aqui eu acho que nem sai do jornal, de tão fichinha, aqui é roubo municipal no interior, esse inglês não tem qualificação nem para uma deputança. Esqueçamos o passado, vêm aí as eleições, hora de escolher democraticamente o seu ladrão!

Como já deve ter previsto o pugilo de bravos que me lê com assiduidade, de novo as Parcas me fizeram a grande maldade de marcar para anteontem (tempo de vocês, este domingo) o jogo com a Colômbia, mais uma vez impossibilitando que eu leve o resultado em conta. Eu pelo menos podia ter conversado com a Sociedade Interamericana de Imprensa, a fim de ver se ela pressionava a Fifa para corrigir a grave injustiça e mudava a tabela, mas é tarde. E, se eu houvesse feito a besteira de escrever, como cheguei a pensar, que o jogo tinha sido moleza, como sempre acontecia com o freguês Chile? Teria quebrado a cara, como quase quebro no boteco, quando pulei na hora em que, já no fim da prorrogação, o Chile botou aquela bola na trave e dei com a testa na tabuleta que anunciava o chope em promoção. Esqueçamos, esqueçamos.

O jeito é voltar-me para os últimos acontecimentos extra-Copa. Quase todos eles se relacionam com o edificante espetáculo democrático deste ano de eleições. Lá e cá, por todo o país, como que se ouvem gritinhos pressurosos pululando nos ares — cadê o meu, cadê o meu, tenho que me fazer, tenho que me fazer! — enquanto estadistas e líderes se digladiam no embate inflamado de ideias, planos e projetos de ascensão pessoal e grupal e os partidos se empenham por caracterizar nitidamente suas posições, embora, assistindo-se a seus anúncios na televisão, seja um pouco difícil distinguir identidades e programas próprios. Todos eles pregam a justiça social, o combate à exclusão, os investimentos em saúde, educação, segurança, coisas com as quais, de tão vagas, qualquer um concorda. Nenhum deles mostra como e o que fará para avançar nesses campos. Isto fica para depois e, pelo visto, sempre ficará.

Cada vez mais abusadas, algumas palavras perderam o sentido. Quase ninguém é capaz de fazer uma distinção teórica, ou abstrata, entre esquerda e direita políticas e, por exemplo, o ex-presidente Lula as emprega para lá e para cá, conforme a necessidade do momento. Ou seja, direita, assim como esquerda, é o que convém. Nega que seja de esquerda e em seguida vocifera contra manobras da direita, como se fosse um porta-voz da esquerda continental. Aliás, é interessante essa conversa de direita e esquerda, considerando-se que Lula é ex-aluno (isto mesmo) da Universidade Johns Hopkins (isto mesmo, universidade), venerável, prestigiosa e cara instituição de ensino americana, onde estudou (isto mesmo) no começo da década de setenta e quem sabe recebeu (não tenho certeza, mas creio que sim) um diplomazinho, ou certificado, que teria precedido o diploma de presidente, o qual bem depois lhe foi conferido, ocasião em que ele proclamou que o primeiro diploma que o operário sem estudo e filho de mãe analfabeta recebia na vida era o de presidente da República. Eu, se tivesse tido até mesmo umas duas parcas semaninhas de seminário na Johns Hopkins, me gabaria de vez em quando, mas esta vida é assim mesmo, tudo é muito relativo. Talvez ele queira esquecer seu período de estudante em Baltimore. Lá de fato faz muito frio, embora eu tenha lido em algum lugar da internet que ele, como sempre simpático, descontraído e boa-praça, fez sucesso e deixou muitos amigos e admiradores. Pode ser que não queira encher a bola da AFL-CIO, poderosa organização sindical americana sob cujos auspícios estudou na Johns Hopkins e, antes, em São Paulo mesmo. O homem não é só doutor honoris causa, não, tem outras láureas acadêmicas, conquistadas nos bancos escolares, de que ele, na sua proverbial modéstia, não fala.

Outra palavra que já merece uma pesquisa semântica é “elite”. Lula também faz embaixadinhas com ela a torto e a direito e é preciso estar atento. Assim mesmo, é difícil entendê-la, a começar pela circunstância de que, desde a época em que foi chamado como promissor talento para a temporada universitária patrocinada pela AFL-CIO, formadora de quadros sindicais presente, respeitada e temida em todo o mundo, ele é elite. Foi elite dos sindicalistas, é elite do partido que está no poder, exerceu o posto mais alto da elite governante, num país onde o presidente da República é um monarca tratado com subserviência e vassalagem, viaja esplendidamente para palestras e lobbying, come do bom, bebe do melhor, é amigo pessoal e companheiro de lazer de ricos e poderosos, se trata nos mais respeitados hospitais com os mais renomados médicos, não entra em filas, não pega transporte público, não paga aluguel de casa nem prestação de carro, não se aporrinha com providências do cotidiano, não tem preocupação com o futuro, ganha mais do que todos os professores do primeiro grau da rede pública do Maranhão juntos, manda para lá, desmanda para lá e, ainda por cima, é cultuado por grande parte do povo. Então, ele não é elite? De que mais se precisa para ser elite?

Uma aparente novidade não altera a situação dele e até a faz mais difícil de compreender. Trata-se da expressão “elite branca”. Se bem me lembro — e até conferi nuns clipes que guardo no computador — Lula tinha o cabelo bem crespo, antes de sua completa ascensão política. Como sua pele não é alva, poderia talvez, por causa do cabelo, ter sido considerado pardo ou, como se dizia antigamente, mulato. Ou até negro, pelos critérios americanos que agradam a tantos. Mas hoje, como o nome de Conceição, o cabelo dele mudou. Alguém que nunca o tivesse visto antes, nem em fotografia, tê-lo-ia na conta de branco de nascença. Branco latino-americano, hispânico para os americanos, mas, em última análise, branco. Por conseguinte, ele não apenas pertence a várias elites, como pertence à elite branca, ele ficou branco. De resto, elite branca mesmo, no Brasil, só as famílias mais prósperas das comunidades de origem europeia, no Sul. Vai ver que elas acham que die Eschculambazionen foi longe demais e vão chamar dona Angela Merkel para derrubar o PT.

Rigorosamente, quando o amável leitor e a encantadora leitora lerem no jornal de hoje que algum fato se dará amanhã, estarão lendo uma mentira, não importa a veracidade da notícia. A mentira se encontra na feitura da matéria, porque o redator a escreve, por exemplo, na quinta, para que ela seja publicada na sexta. Portanto, para ele é quinta, mas, como o jornal sai na sexta, escreve “amanhã”, referindo-se ao sábado. Quando eu escrevo “hoje” aqui, claro que não é o hoje do dia em que escrevi, mas o hoje de hoje, domingo. Parece e é simples, mas, pelo menos no tempo em que não havia escolas de comunicação e a profissão se aprendia no tapa, sob a orientação nem sempre carinhosa de veteranos, muitos focas — ou seja, calouros — caíam nessa. Eu mesmo, vergonha mate-me, caí e acho que o trauma da gozação subsequente nunca foi inteiramente superado. Minha matéria tinha um “realizou-se hoje”, ou equivalente, mas, para os leitores, seria “realizou-se ontem”.

Outro dia, esteve um técnico aqui em casa, para resolver uns probleminhas de televisão. Muito simpático, fez questão de cumprimentar-me com efusão. Pessoalmente, não era dado à leitura, mas na família dele havia vários fãs meus, tinha realmente grande prazer em me conhecer, era uma honra. E aí, com boa vontade e competência, ajeitou todos os pepinos encontrados. Muito grato, resolvi pegar dois livros meus que estavam por aqui à toa, para dar de presente a ele. Ele ficou comovido, pediu dedicatórias para o pessoal da família. Enquanto eu fazia as dedicatórias, me perguntou, com admiração:

— O senhor leva mais de um dia para fazer um livro destes, não é, não?

— Levo, levo — disse eu.

Portanto, concluo que haverá quem pense que, minutos antes do fechamento da edição, me dirijo a este computador, encaro o teclado como um pianista virtuose iniciando um concerto e, em poucos instantes, dedilho um texto prontinho para ser publicado. Ai de mim, já se disse mais de uma vez que escritor escreve com dificuldade, quem escreve com facilidade é orador. Além disso, o fato de eu ser acadêmico me rende uma fiscalização zelosa e irritadiça. Um dia, em 2012, eu me distraí e escrevi “asterisco” em vez de “apóstrofo” e até hoje padeço por isso. Mas, mesmo que não fosse assim e eu fosse o Flash, a triste situação em que me meteram os fados cruéis não seria resolvida.

O primeiro clichê do jornal de domingo, como sabem os mais impacientes, começa a chegar às bancas no fim da tarde do sábado. Ou seja, praticamente tudo já estará pronto, quando acabar o jogo de ontem. Vejam que frase esquisita acabo de escrever: quando acabar o jogo de ontem, estranhíssima contradição em termos, pois é óbvio que o jogo de ontem só pode ter acabado, tudo de ontem já acabou. Hoje (hoje hoje) já sabemos o resultado do jogo com o Chile, mas hoje (o dia em que escrevo) isto não é possível. Não é possível nem ter certeza absoluta de que o jogo de ontem realmente aconteceu. Situação diabólica, isto não se faz.

Neste caso, por que não escrever sobre outro assunto que não a Copa? Também não é possível. Ninguém, a começar por mim, está interessado em outra coisa. Além disso, seria correr da raia sem explicação, já que venho escrevendo sobre a Copa nas últimas semanas e, apesar de não entender nada de futebol, sempre tive a fantasia de ser comentarista esportivo. Mas me sobra o quê? Apesar de entender ainda menos de odontologia ou de canibalismo humano, podia talvez discorrer sobre a mordidona aplicada pelo jogador Luis Suárez num italiano. Baixei aquela tomada do “lance” em câmera lenta e a dentada em zoom, já a vi diversas vezes e, de fato, foi uma dentada crocodilesca, capaz de abocanhar um megahambúrguer num só golpe. Os dentes dele, enormes, parecem os de um castor e creio que, se ele quisesse comer a bola literalmente, seria proeza fácil. Não sei se vocês leram nos jornais, mas um norueguês apostou num bolo que ia haver a mordida e ganhou uma graninha. O Suárez abre toda uma linha nova de apostas, que deverá incluir não somente mordidas, mas vários outros aspectos do futebol, tais como o número médio de cusparadas dadas pelos jogadores de um determinado time.

Mas continuaria a transparecer que eu, por alguma razão, estava evitando propositadamente falar no jogo contra o Chile. No desespero, é sempre tentadora a ideia de antecipar temerariamente o resultado e depois rezar para que tudo dê certo. Grande tentação. O Chile sempre foi freguês e não vejo nada de excepcional no time deles. E todo mundo sabe que o futebol enfrenta dificuldades no Chile, porque é só olhar no mapa para constatar que o país é fininho demais para ter campos na direção leste-oeste, só pode na norte-sul, o que constitui grave limitação para o preparo dos atletas. Enfim, bem que eu podia escrever hoje (o dia em que escrevo) como se o jogo de ontem (o ontem deste domingo) já tivesse sido ganho pelo Brasil. Mas os riscos são em demasia e, além de tudo, sei que qualquer coisa que eu diga impensadamente poderá render-me uma fama de pé-frio indelével.

E, assim abatido pelas circunstâncias ingratas, resolvi ligar para velhos amigos, como Zecamunista, em quem, apesar de certas diferenças ideológicas, sempre posso confiar. Mas ele me interrompeu assim que mencionei o Chile.

— Eu sei — disse ele. — Esse jogo deve estar no papo, porque o Chile é freguês, mas aconselho você a tomar as mesmas precauções que eu. Você aposta no Chile, esquece, e continua torcendo pelo Brasil normalmente. Se o Brasil ganhar, o dinheiro não foi em vão, foi sua contribuição para a vitória nacional. Se perder, é como um seguro, pelo menos você embolsa algum e não chora de barriga vazia, é tudo dialético.

Não se pode negar que o empate contra o México repercutiu mal em Itaparica, com as habituais exceções. Por exemplo, Gonçalinho Bode, que ninguém leva nem a pescaria na contracosta, porque, quando ele está presente, só se fisga baiacu, achou o resultado bom, conquanto não tenha assistido ao jogo, por não ter tevê e por ser sempre convidado a retirar-se do recinto assim que o time adversário pega na bola. Há muitos anos, dizem que Ary de Maninha iniciou um movimento para naturalizá-lo argentino, mas alguém dedurou o esquema e a Argentina decretou emergência nacional e fechou as fronteiras, portos e aeroportos. Merece também menção o caso singular de Tonho Profeta, assim alcunhado porque, aconteça o que acontecer, ele sempre aparece no Bar de Espanha pouco depois e, quando alguém menciona o ocorrido, estica o indicador e fala “eu não disse?” Pois é, ele também disse que o jogo ia empatar e ficou contente, embora se deva reconhecer que qualquer outro resultado teria efeito igual, Tonho nunca falhou. E sei que isto é uma digressão talvez condenável, mas não resisto a lembrar a ocasião em que pediram a Tonho para prever o resultado de um Ba-Vi.

— Eu nunca previ nada — disse Tonho. — Vocês querem é me pegar como mentiroso.

— E não é, não?

— Eu não disse? — retrucou Tonho brilhantemente.

No mais, nada de excepcional ou inusitado se observou, com a notável exceção de Zecamunista, que deu dois murros na mesa, puxou seu boné do Exército Vermelho quase até o nariz, levantou-se e se preparou para sair, pouco antes do fim do jogo contra o México.

— Já vai, Zeca? O jogo não acabou, assim você quebra a corrente.

— Que corrente? Não me envolva em suas práticas supersticiosas e primitivas, não faço parte de nenhuma corrente.

— Tudo bem, então fique aí de qualquer jeito, pela companhia.

— Muito obrigado, mas eu me recuso a ver esses Pancho Villas reduzindo a Seleção a guacamole, não vim aqui para ser humilhado! Manda a vergonha que eu me recolha a meus aposentos particulares e não apareça mais em público até o fim desta Copa! Onde já se viu? Onde estamos? Se a Copa fosse de bolero, tudo bem, futebol não! Não me esperem mais, tudo tem limites!

Falou da porta e, em seguida, esmurrando o ar, retirou-se, deixando algumas indagações entre os presentes. Com sua grande cultura, fizera alusões que talvez esclarecessem aspectos da partida que houvessem escapado a olhos menos escolados, mas não se chegou a um acordo sobre o exato significado de alguns dos termos que ele empregou. Uns supuseram que Pancho Villa era o nome de um jogador mexicano, mas neste caso havia um raro equívoco da parte de Zeca, porque Manolo checou no jornal e não tinha nenhum Pancho Villa no time mexicano. Outros sustentaram que a palavra era “panchovia”, que queria dizer perna de pau em mexicanês. Quanto a guacamole, o consenso foi de que em boa coisa não deve consistir e muitos já tapam o nariz preventivamente, quando ouvem a palavra.

Felizmente, a ameaça de Zeca não se concretizou e, dois dias depois do rompante, ele estava de volta ao Bar de Espanha, onde quase foi aplaudido na chegada. Agora com tranquilidade, certamente poderia explicar a questão dos panchovias e do (ou da) guacamole, bem como outras, não acessíveis à maioria. Seu velho semblante subversivo, contudo, permaneceu impenetrável durante um certo tempo, enquanto ele fincava os cotovelos no balcão, pedia uma cerveja e bebia os primeiros goles, sem dizer uma palavra. Já o suspense se tornava insuportável e as perguntas já iam pulular, quando, com os olhos mirando um ponto vago à distância, ele resolveu falar.

Tinha, inicialmente, de fazer uma autocrítica. No jogo contra o México, realizara um diagnóstico apressado da situação e reagira emocionalmente ao que acontecera em campo. Embora isto não se justificasse, tinha uma explicação. Ele era do tempo em que o México só tinha um goleiro, o bom e velho Carbajal, que jogou umas dezoito Copas e só saiu do time porque a Fifa proibiu o uso de bifocais na pequena área. Todo menino aprendia na escola que o México era freguês e que os mexicanos torciam nas Copas pelo Brasil. Agora, vissem todos, o México apertava o Brasil e seu goleiro, que não chega nem perto do velho Carbajal, é lançado candidato a melhor da Copa.

— Ora, viu-se muito bem que esse goleiro não pegou nada — disse ele. — Ele ficava embaixo do travessão, a bola batia nele e ele tomava um susto medonho. Defesa mesmo, eu só vi uma. E aí vai se vendo como esta Copa é anormal. Temos o goleiro mexicano. Temos a Espanha, toda campeã do mundo e toda porreta, tomando sete gols em dois jogos e sendo despachada de rabo entre as pernas. Temos os holandeses, também muito retados, que quase tomam um cacete da Austrália, onde só existem quatro bolas de futebol, todas da seleção deles. Temos a Bélgica, também muito retada, que quase quebra a cara no primeiro jogo. Tem um baiano de Itabuna e um carioca na Croácia, um sergipano de Lagarto na Espanha e um paulista na Itália. E por aí vai, ninguém entende nada. Cheguei à conclusão de que ganhar a Copa só depende de nós. É o que dizem os fatos e um bom materialista, como eu, se guia pelos fatos. Cada um que faça a sua parte. Eu mesmo me lembrei de que cometi uma falha contra o México e não usei a mesma cueca do jogo contra a Croácia. Mas agora eu peguei essa cueca no cesto de roupa usada, não deixei que lavassem e a falha foi corrigida. A Croácia já descascou o camarão, vamos à moqueca!

Embora microscópica e por vezes até clandestina, sempre houve uma torcida brasileira contra o Brasil, em todas as Copas. Os componentes dessa falange têm, sob outros aspectos, pouco em comum entre si. Uns são do contra pela própria natureza, nasceram assim. Outros são apostadores frios e desalmados, que botariam uma graninha contra a própria mãe, se as probabilidades fossem boas, quanto mais contra o Brasil, cuja gentileza maternal está no Hino, mas todo mundo sabe que não é bem assim. Outros discordam do técnico e da escalação e preferem perder a Copa a perder a discussão. Outros são supremacistas, acreditando na superioridade congênita de alemães, ingleses, holandeses ou escandinavos. E, na minha remota juventude, os comunistas apátridas eram rotineiramente acusados de preterir o Brasil, em favor de qualquer país da Cortina de Ferro.

Nada cataclísmico, mas, na Copa de 70, houve, como lembrarão os menos mocinhos, um movimento amplo e sério pela torcida contra, porque a vitória era vista como um triunfo para o regime militar. Não se falava muito sobre o assunto, que na época podia render uma cana bastante dura, mas havia mecanismos para contornar a situação. Uma festinha em casa, talvez significativamente, era comumente chamada de “reunião”, mesmo que não passasse de um jantar de aniversário. A certa altura da reunião, a eclosão do debate se tornava inevitável. Oradores inflamados e seus aparteantes mostravam como, se o Brasil ganhasse a Copa, o povo legitimaria de vez o regime e nunca mais sairíamos dele. O verdadeiro patriotismo consistia, portanto, em ignorar a Copa e, com mais coragem ainda, torcer contra o Brasil.

Era talvez a atitude mais chique. Se o politicamente correto já existisse então, sem dúvida teria nela uma postura exemplar. Em alguns militantes da causa, notava-se o ar estoico de quem ia para uma missão suicida num filme de guerra, como quem diz que não é nada, mas tem consciência do grande sacrifício que está fazendo. Para a vasta maioria atoleimada pelo futebol, reservavam-se sorrisos complacentes e comentários resignados, do tipo “eles não sabem o que fazem, são todos uns alienados, anestesiados pela bola”. Mas isso, como se sabe, só durou até o apito inicial do nosso primeiro jogo, contra a então Tchecoslováquia.

Começou com o Hino, cujos primeiros acordes provocavam os habituais nós na garganta, olhos úmidos e corações inquietos, mesmo em alguns dos mais decididos militantes. E aí a Tchecoslováquia fez o primeiro gol e um manto de silêncio se estendeu sob os céus da nação. Uns poucos radicais se atreveram a comemorar meio sem graça, outros disfarçaram em dissertações políticas, nenhum dos antes exaltados soltou os foguetes e rojões que havia planejado para os revezes brasileiros e as poucas, chochas e falsificadas manifestações de contentamento se reduziram a apertos de mão circunspectos, quase funéreos. Mas logo em seguida o Brasil empatou e enfiou quatro nos tchecos, com a consequência de que o movimento desapareceu imediatamente e afundamos em gritos, urros, pulos, punhos fechados, bravatas e exaltações variadas. No dia posterior, seria vaiado ou banido do ambiente quem quer que se manifestasse contra o Brasil, explicações políticas ou não. E, antes do jogo contra o Uruguai, já perto do fim da Copa, havia quem não dormisse com medo de nova derrota e sugerisse até uma invasão preventiva, para evitar nova surpresa desagradável.

Também não adianta torcer por outra seleção, como tentam alguns, por mais que a escolha seja bem motivada e bem explicada. Sei disso na pele, porque, em l990, eu morava em Berlim e a Copa foi pertinho, na Itália. Numa noite melancólica e lúgubre, assisti ao Brasil de Lazaroni ser despachado pela Argentina, logo nas oitavas de final. Achei, como me acontece desde menino, que ia deixar de me chatear por causa de futebol e não ia mais torcer por time ou seleção nenhuma. Mas claro que, como também me acontece desde menino, no dia seguinte eu estava diante da televisão novamente, para ver os outros jogos, embora sem torcer.

Mas é chato assistir a uma final de Copa sem torcer e concluí que torcer pela Alemanha, na final contra a Argentina, podia ser até uma bela e recompensadora experiência, a começar pela vingança da derrota nas oitavas. Além disso, sempre me dei muito bem na Alemanha, onde até já escrevi regularmente para jornais e tenho muitos amigos. Sim, torceria fervorosamente pela Alemanha e, sorrindo os fados, comemoraria com festa a sua conquista. E comemorei com tanto empenho quanto pude, brindei com espumantes, abracei os amigos alemães que estavam lá em casa, comentei lances do jogo. Mas só eu sei como aquilo foi forçado, não por causa dos alemães, mas por causa do Brasil mesmo. Mais tarde, enquanto Berlim fazia a festa dos vencedores, me chamaram para sair também, eu não fui, acho que entraria em depressão invejosa. Torcer por outra seleção nunca será a mesma coisa.

E, por mais que a contratorcida tente justificar-se, acho que as Copas, inclusive esta, mostram que ela nunca vingará. A Copa não é de governo nenhum, nunca será, nem governo nenhum vai ter a desfaçatez de tomar para si um feito que, em última análise, é do povo brasileiro e ninguém mais pode apropriar-se dele. Queremos esta Copa, assim como havemos querido e quereremos todas as outras. E, ainda na condição de torcedor, ouso enfatizar que, se ganharmos a Copa, não terá sido o governo, teremos sido nós, como aconteceu todas as vezes em que ganhamos. E — bato na madeira — se perdermos, terá sido o governo, nem que seja por pé-frio.

Venho lendo várias opiniões sobre os xingamentos à Dilma no estádio. Contra e a favor. As alegações vão desde “expressão de revolta” e “natural para o ambiente” até a “identificação de classe social reinante” e “machismo”. Acho natural que as opiniões sejam controversas, porque atualmente, neste país bipolar, nada é simples.

Por um lado, foi um comportamento grosseiro sim. Foi extremo, sim. Foi desrespeitoso, sim. Não é bonito ver uma multidão gritando palavrões. E sim, haveria outras formas de demonstrar repúdio. Por outro lado, o PT está colhendo o que plantou, sim! Tem muita hipocrisia na indignação dos petistas. A indignação dos oposicionistas, surpreendentemente, soa mais sincera. Ou, pelo menos, mais coerente.

O próprio PT nos ensinou que os atos devem ser encarados segundo suas motivações e não o ato em si. Mesmo discordando do ato, devemos ser tolerantes dependendo dos motivos. Então, mesmo achando que foi um ato feio, tentemos compreender o que levou a plateia a se manifestar dessa forma.

Que erros cometidos pelo PT levaram a esse acontecimento?

1) O PT, com seu comportamento, vem ensinando à população que:
– contra quem discorda de sua vontade, é válido agir com xingamentos e até violência. Até ameaçar uma autoridade com “um tiro na cabeça” é válido, depredar patrimônio público é aceitável, invadir propriedades é louvável, então um palavrão é realmente mais grave que tudo isso?
– para se conseguir o que quer, tudo é válido – os fins justificam os meios.
-debate político se faz com agressões e não com argumentos. Debate político em nível elevado é coisa de ‘conservadores atrasados”, da “direita reacionária”. A geração liderada pelo PT levou a política a níveis chulos, em nome do populismo. Vale voltar ao ano de 2000, com a famosa frase de José Dirceu em um palanque: “Eles [os tucanos que governam São Paulo] têm que apanhar na rua e nas urnas” , o que provocou uma agressão física de sindicalistas ao Mário Covas, já doente do câncer que viria a matá-lo.
– negociação é coisa desvalorizada; quando se tem uma causa, é preciso usar a intimidação e a força. Se você quer ter propriedade, é válido invadir a propriedade de outro. Se o governo quer mudar uma estrutura institucional, melhor governar por decreto. Se você roubou ou matou porque a sociedade o colocou na pobreza (ou para ajudar o ParTido), é preciso ser tolerante. Nem sempre é preciso ter respeito pelo outro.
– a tolerância a qualquer ato de rebeldia é relativa. Depende muito do conceito de “nós e eles”. Portanto, mandar o Cabral tomar naquele lugar pode, mandar a Dilma, não. Jurar de morte o líder do Judiciário não é nada demais; xingar a líder do Executivo é gravíssimo.
– se a autoridade pertence ao bloco de “eles”, não merece respeito. Se for uma ameaça, deve-se buscar uma forma de destruir sua reputação, mesmo com mentiras. É compreensível e tolerada até a agressão física. Deixaram isso muito claro quando a Presidente da República recebeu na sede do governo, com festas e agrados, os manifestantes do MST que feriram 30 policiais que tentavam impedir que esses manifestantes invadissem prédios públicos; embora somente 2 manifestantes tivessem sofrido ferimentos leves, os policiais (um deles ferido gravemente) foram os criticados pelo Ministro da Justiça por estarem cumprindo seu dever de proteção do patrimônio público.
– o Brasil foi dividido em vários pedaços, e cada pedaço foi ensinado a ver o outro com ódio e desprezo. Aqueles com quem não concordamos (ou que não concordam como ParTido) são nossos inimigos.
– criticar grosserias ou cobrar uma postura ética e respeitosa passou a ser considerado “coisa de coxinha”, “coisa de elite burguesa”, “coisa de branco de olhos azuis” e, mais frequentemente, “preconceito”. A garotada resolve fazer bagunça e correria nos shoppings assustando os frequentadores e lojistas? Só a elite burguesa achou isso inconveniente. A garotada da periferia só queria ter seu direito de expressão, e estar em um local público não deveria mudar seu comportamento. Bem, o público do estádio também só queria se expressar.

2) Erros de estratégia:
– o governo do PT, ávido por manter o poder eleitoral, politizou um evento esportivo a seu favor. Em todas as referências à Copa, aproveitou para inserir autoelogios mentirosos à sua administração. Até o pronunciamento da presidente referente à abertura da Copa foi recheada de propaganda institucional, como foi o seu discurso, que deveria ter sido de boas vindas ao Papa, na Jornada da Juventude. Depois esperavam que o público presente no evento dissociasse o evento da presença dela no estádio. Não poderia acontecer.
– não consideraram o ambiente. Esse xingamento específico, de uns anos para cá, passou a ser corriqueiro em estádios de futebol. Povo mal educado? Sim. Mas também temos um presidente emérito que diz publicamente coisas como “querer metrô até os estádios é babaquice” e que, quando não sabe que está sendo filmado, também usa palavras de baixo calão como vocabulário normal, inclusive a mesma frase.
-não consideraram que, neste evento, o povo é “nós” e o governo é “eles”. Por mais que tenham elitizado o futebol, o esporte não pertence ao governo, pertence ao povo. É o seu território, mesmo que os estádios sejam privatizados. Mas o comportamento desrespeitoso vai ser o que foi ensinado. E tentar excluir determinada classe social da categoria de “povo” é hipocrisia manipulativa. Povo é coletivo: a soma de todas as classes sociais, todas as religiões, todas as raças e todas as escolhas políticas de um país. Ou seja, todos os seus habitantes, sem exclusão, como determina a tão ignorada Constituição Brasileira.
– o governo priorizou, por ideologia, o sentimento de lealdade ao bloco de países socialistas e à liderança de Cuba, em vez da identidade brasileira. Fez isso por 12 anos seguidos. Inseriu a bandeira de Cuba, que sequer participa do evento, com destaque no clip oficial da Copa do Mundo no Brasil como mensagem subliminar. Provocou a “onda vermelha” de bandeiras em substituição à verde e amarela. Chegaram ao ponto de fazer militantes substituírem a bandeira brasileira em uma universidade por uma bandeira vermelha. Bandeiras brasileiras são queimadas em protestos organizados por seus “coletivos”. Tentar resgatar a identidade e o patriotismo brasileiro em cima da hora não convenceu. A presidente trocar o tailleur vermelho pelo verde na véspera da abertura da Copa não convenceu. Esqueceram que o esporte nacional em Cuba é o beisebol, não o futebol. O futebol desperta o verde e amarelo no coração do brasileiro. Nesse momento, o povo auriverde perde a identificação com o governo vermelho. O governo torna-se “eles” no imaginário do torcedor, e sua presença lembra o tamanho de sua insatisfação com “eles” nos outros aspectos de gestão, mesmo que torça para a seleção. E reage de acordo com o comportamento de desrespeito ensinado por seus governantes.
– a relação entre povo e governo é muito parecida com a relação entre filhos e pais. Filhos tendem a testar limites com os pais e a imitar seu comportamento. Os pais, ao educar os filhos, estabelecem onde fica a linha do limite. Se os pais usam de dois pesos e duas medidas, a linha não é contínua. Quando essa linha é pontilhada, os filhos aprendem a ultrapassar o limite por entre os espaços vazios, pois perdem a referência de quando o mesmo ato pode ser tolerado ou não.

Terá ficado alguma lição, algum legado, desse acontecimento? O futuro dirá. Uma interpretação possível é a da reciprocidade: o povo apenas desejou à nossa governanta o que ela tem feito com ele esse tempo todo.