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Archive for the ‘João Ubaldo – 2010’ Category

Não sei bem a que se pode atribuir a crescente moda de intervir na vida pessoal do cidadão brasileiro. Inclino-me a acreditar que isso se deve à falta do que fazer de um número cada vez maior de burocratas e tecnocratas. Todos eles detêm certezas sobre tudo o que julgam ser de sua alçada. Em matérias “técnicas”, não há espaço para posições divergentes. Afinal, a técnica provém da ciência e a ciência fornece certezas. E essas certezas são tão poderosas que devem sobrepor-se até mesmo aos valores de indivíduos ou coletividades. O conceito de normalidade, tão enganoso não só científica como filosoficamente, parece para elas assente e inequívoco.

Claro que tais certezas, que amiúde se expressam em arrogância, autoritarismo e condescendência enfarada, não são certezas de coisa nenhuma, são apenas ignorância e estreiteza de horizontes em ação. O resultado é que nos vemos ameaçados a todo instante de sermos obrigados a nos comportar “normalmente” ou, pior ainda, corretamente. Volta e meia, alguma autoridade baixa regras sobre como devemos fazer compras em farmácia, que tipo de tomada nos convém usar ou que equipamento passou a ser compulsório nos automóveis. Com o nosso tradicional temperamento de rebanho ovino e de “tudo bem, contanto que não me incomode diretamente”, vamos deixando que esse negócio se espalhe e tome conta de nossa vida.

Além do combate ao uso do tabaco e do álcool, creio que devemos esperar, a julgar por sinais aqui e ali, que nos ditem o que podemos comer. Em cantinas escolares, isso já é feito. Mas creio que os nossos mentores, protetores e tutores não considerarão seu trabalho concluído enquanto o pai que dê uma gulodice açucarada a seu filho não puder ser denunciado e enquadrado e perder o pátrio poder, se persistir em seu comportamento reprovável. Aliás, imagino que, com a vigência da lei da palmada, cedo chegará o dia em que pais e mães denunciados por palmadas desobedecerão a ordens judiciais e instruções de psiquiatras para serem corretos e normais e, portanto, o Estado os meterá na cadeia e lhes tomará os filhos, que terão seu futuro garantido, sob a guarda eficiente, carinhosa e científica de instituições modeladas na Funabem.

Assim como os fumantes oneram a saúde pública com as doenças causadas por seu feio vício, também o fazem os obesos, com seus problemas cardíacos, sua diabete, sua hipertensão. E não se pode esquecer que, caso essas pessoas de conduta e aparência condenáveis tenham filhos, estarão delinquindo ainda mais, pelo mau exemplo. Espero que em breve um dos mil braços do governo estabeleça padrões alimentares a que as famílias terão que obedecer, pelo bem de sua saúde e sob pena de suas compras de alimentos só poderem ser feitas sob a orientação de um técnico credenciado. Claro, ovo já foi um horror e hoje é permitido e até encorajado. Margarina já foi aclamada como o substituto sadio da manteiga e hoje é execrada. São as verdades científicas.

Ao contrário do que chegou a divulgar-se, os defensores da censura a Monteiro Lobato não foram derrotados nem alteraram suas posições. O livro pode ser lido, mas sob a supervisão de um professor com qualificações específicas. Ou seja, em última análise, um técnico em leitura literária, um guia. Diretamente, sem intermediários, o livro não pode ser lido. Acredita-se que existe a maneira certa de ler, entender e apreciar um determinado livro. As maneiras que não se encaixem no padrão correto são, por consequência, errôneas e inadmissíveis. Daí se passará, imagino eu, à exigência de que os livros, não somente na escolas, mas entre o público em geral, só possam circular depois de lidos pelos técnicos, que escreveriam uma espécie de bula ou modo de usar, para que os leitores apreendessem corretamente a leitura. Claro, não é censura, é apenas a aplicação da verdade científica ou objetiva.

Aliás, falando em livros há outras novidades, ainda no terreno da cultura. O plano é mudar a lei dos direitos autorais. Os proponentes das mudanças dizem que não estão de fato querendo mudar nada, porque todas as suas ideias estariam contidas em dispositivos legais já vigentes. Pergunta-se, nesse caso, por que é preciso fazer uma nova lei. Não sei bem, mas sei, pelo que já me foi contado, que a produção de cópias de livros ou textos sem pagar direitos autorais será permitida, contanto que para fins educativos. Ou seja, qualquer coisa, ainda mais no mangue educacional que é o Brasil. O sujeito escreve um livro que é adotado em classe e esse livro pode ter praticamente uma edição à parte, pois há máquinas que possibilitam isso, copiando um livro inteiro e cuspindo do outro lado volumes já encadernados, com capa e tudo. O autor não vê um centavo, embora os produtores da edição pirata se remunerem pelo seu trabalho de “difusão” e, principalmente, os fabricantes das máquinas ganhem.

Interessante isso. Acredita-se que um estudioso dedique anos de pesquisa e trabalho duro a produzir algo pelo qual não será pago, a não ser pela distinção de ser adotado nas escolas. Por que os funcionários do governo que lidam com cultura não abdicam de seus salários, já que a verdadeira cultura não pode ter preocupações materiais e o artista pode viver de brisa? Trabalhar para a cultura é isso, é ser filósofo e poeta aos olhos do grande público. Morrendo bêbado, tuberculoso e na sarjeta é ainda melhor, compõe o quadro romântico.

A interferência do Estado na elaboração, venda e circulação de livros e, acima de tudo, a tutela de seu uso, sua interpretação e sua avaliação não é mais nem autoritarismo, é totalitarismo fascistoide mesmo, é controle do pensamento. Mas moda é moda e, como ninguém reage, vão nos empurrando essas e outras goela abaixo, até o dia ideal em que não pensaremos mais, porque os pensadores certos já terão pensado tudo por nós.

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Não lembro se já tive a oportunidade de mencionar aqui determinados fenômenos, no campo da sexualidade e da reprodução, restritos, pelo que se sabe, à ilha de Itaparica. Devo ter dito alguma coisa, mas é tema sempre merecedor de atenção. Por exemplo, uma visita ao Mercado Municipal Santa Luzia, movimentado centro do comércio local, poderá, se bem conduzida, render preciosas informações sobre como certos criadores de galos de briga do Alto das Pombas e da Misericórdia, depois de afincadas tentativas, cruzaram galinhas de briga com urubus, obtendo linhagens excepcionais. Nunca consegui ver um desses híbridos, mas não vou duvidar da palavra de meus conterrâneos.

Assim como não duvidei, para citar somente mais um exemplo, do finado Sete Ratos, peixeiro muito amigo meu, que me contou ter visto, “não foi uma nem duas vezes”, uma enguia popularmente conhecida como caramuru cruzando com uma jararaca, no meio das pedras do raso da vazante. Os dois se enroscavam apertadinhos e ficavam na maior safadeza horas e horas, me garantiu Sete Ratos. Nunca ninguém me falou sobre o nascimento de jararamurus, mas imagino que seriam o fruto natural dessa união.

A ilha sempre foi terra fértil, de varões fecundos e fêmeas ferazes. (A aliteração foi sem querer, de vez em quando me baixa um troço assim, é a criação.) Até as plantas, no ver de muitos, são uma indecência e há quem impeça que sua atividade seja testemunhada por crianças, tamanha a promiscuidade promovida por abelhas, beija-flores, borboletas, morcegos e demais alcoviteiros. Na idade em que as árvores de outros lugares estão mal saindo da condição de arbustos, ainda mocinhas, as da ilha já dão fruta assim que botam quatro ou cinco galhos e diz o povo que é muito difícil uma plantação de mangueiras de variedades puras dar certo na ilha, porque elas caem logo na maior sem-vergonhice e uma mesma mangueira às vezes dá dois ou três tipos diferentes de manga, tal o ponto a que chega a descaração.

Agora, sempre na vanguarda, a ilha está sendo agitada pelas notícias vindas das páginas de ciência das gazetas. Diz aqui, se bem entendemos, que cientistas conseguiram produzir camundongos com a carga genética de dois machos, sem necessidade de material de uma fêmea. Há umas complicações e diversos obstáculos técnicos a vencer, mas o fato é que não está muito longe o dia em que será possível para dois homens ter um filho somente deles dois, sem precisar de um óvulo, ou seja sem precisar de mulher. Da mesma maneira, duas mulheres poderão prescindir de homem para fazer um filho de ambas. Claro que, como observou Zecamunista, o supremo sexo (ele chama as mulheres de “o supremo sexo”) é superior até nisso, pois os dois homens podem fazer lá o filho deles, mas vão precisar alugar um útero para abrigar e parir a criança, enquanto as mulheres já vêm equipadas de fábrica. Há de crer-se – acrescenta Zeca, meio pessimista – que chegará o dia em que elas só produzirão machos apenas para o entretenimento de algumas taradas. De qualquer forma, não vai mais colar que duas pessoas do mesmo sexo não podem casar porque a finalidade principal do casamento é a procriação. No futuro todos os casais, de qualquer sexo, poderão procriar e será preciso outro argumento.

E sabe-se que os cientistas que vivem saindo em jornal nunca estão satisfeitos, de maneira que, como decorrência dessas novidades, dizem que demora um pouco, mas se aproxima a largos passos o dia em que a criança poderá não somente ter dois pais ou duas mães, mas três, quatro ou cinco mães, ou três, quatro ou cinco pais, ou ainda quatro pais e duas mães ou três pais e cinco mães, conforme o material genético que se deseje obter, o DNA que se deseje montar. Pode ser uma espécie de trabalho em equipe. Zecamunista, sempre antenado com o progresso e usando sua habitual visão dialética, me fez ver a antítese da síntese. No nosso tempo de criança, xingar outro de “filho de uma mãe com 20 pais” era arriscar-se a uma peixeirada.

Doravante, poderá ser um grande elogio.

– Você vai poder elogiar um cara dizendo que ele é filho dos 18 melhores sujeitos da cidade. E que as cinco mães dele são todas lindas.

– E você não acha que isso é meio como criador querendo tirar raça?

– Nada disso, aqui a gente sempre tirou raça e ninguém aqui pode dizer que é raça pura, acho que só Doralice, a galinha legorne de Bertinho Borba, que assim mesmo dá pra qualquer galo da terra que aparecer.

– Mas você é a favor dessas novidades?

– Sou. Na minha opinião, abala os fundamentos da sociedade dominada pela burguesia individualista. O filho passa a ser obra coletiva, é a coletivização da paternidade e da maternidade. Eu vejo nisso até um processo de inclusão. A mulher que não pode ter filho sozinha pode pegar uma caroninha no da amiga. A amiga permite que ela bote uns genezinhos dela lá, não deixa de ser uma realização do sonho de ser mãe. E é uma demonstração de amor ao próximo e de desprendimento, deixar que uma mãe diga a outra que 10% daquele bebê é dela. Mas eu no momento não estou pensando nisso, estou pensando é num projeto que me ocorreu.

– Você está bolando alguma aposta?

– A longo prazo. Eu vou fazer uma vaquinha dos genes dos melhores jogadores de futebol aqui da ilha, os craques mesmo, e vou botar num menino, no mínimo vai dar um super-Obina.

– E você acha que dá certo?

– Com certeza! Já tenho até o nome dele. Vai se chamar Coquetélson. Se revela no Bahia e se consagra no Flamengo.

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Na semana passada, quando falei nos participantes do mercado de drogas, houve quem observasse que quase deixei de lado o consumidor, tido corretamente como o principal elemento, pois sem ele não haveria nem produção nem comércio. É ele a razão de ser do mercado. Ou seja, acabar com a demanda acabaria com a oferta. Certo, certíssimo, mas quem acaba com a demanda? Esse tipo de conversa termina parecendo, para algumas pessoas, que é uma defesa do consumo, mas não é. É uma constatação, tão despida de valores quanto possível. Não digo nem, o que é verdade sob outros ângulos, que sou contra o consumo. Aqui, agora, pretendo somente vê-lo.

Alguns argumentos sobre o consumidor muitas vezes parecem querer enxergar nele a possibilidade de, mediante um ato de “força de vontade”, abandonar o hábito, ou vício. Mas o consumidor de drogas crônico não é capaz de decisões tão racionais. Quase todos os fumantes de cigarro concordam plenamente com os argumentos que ouvem e leem sobre seu vício. E, enquanto escutam as ajuizadas e comprovadas razões dos antitabagistas, acendem, mortos de culpa, um novo cigarro. Os bebedores inveterados também concordam que o álcool danifica o cérebro e o sistema nervoso, arrasa o fígado e causa uma série de outros males – e erguem um brinde a isso.

Que as drogas são maléficas para a saúde todo mundo sabe. Algumas, como o crack, são devastadoras e seu uso contínuo leva invariavelmente à morte. Quem fuma crack, pelo menos o adulto, já ouviu dizer, o que é fato, que ele vicia na primeira tragada. No entanto, a perspectiva da morte morrida ou da morte matada não demove o usuário, nem aqui nem na China, onde fazem julgamentos rápidos e executam traficantes publicamente, dando-lhes um tiro de grosso calibre na nuca, que lhes esfarela o crânio. Em parte da humanidade, talvez não tão pequena quanto se possa pensar, é uma vocação insopitável arruinar a saúde ou a vida, seja pelo álcool, pelo fumo, pelo excesso de psicotrópicos ou anfetaminas, pela maconha, pela cocaína ou por outra droga.

Alguém pode estar pensando que eu agrupei, na pequena lista acima, drogas que não podem ser classificadas da mesma forma. É uma grande verdade, embora haja semelhanças que a gente às vezes não lembra. Arrisco a hipótese de que, em determinados usuários, as alterações de comportamento provocadas pelo excesso de álcool são semelhantes ou até praticamente iguais, às da cocaína, exceto o torpor que acaba sobrevindo ao alcoolista, nos estágios finais da carraspana. Aliás, a combinação dessas duas drogas é comum, no que o usuário talvez pretenda unir o que para ele é o melhor de dois mundos.

Mas as drogas são diferentes entre si, como, por exemplo, a maconha e a cocaína. Não que a primeira seja inofensiva, como é comum ouvir-se. Nenhuma droga é inofensiva e existem estudos que provam os efeitos deletérios de seu abuso na memória, na motivação, nos mecanismos psicomotores, na vida sexual, etc. E os que dizem que fumá-la não causa danos ao aparelho respiratório se esquecem de que isso se deve a que a maioria dos que a fumam, ao contrário dos fumantes de tabaco, só o faz poucas vezes por dia. Inalar fumaça nunca fez bem a ninguém e a maconha tem tantos “alcatrões” quanto o tabaco. Mas enfiá-la no mesmo saco que a cocaína e fazê-la objeto do mesmo combate é como dar o mesmo remédio para doenças diferentes, agravando uma delas. O tráfico de drogas perderia muito poder com uma possível e, para mim acertada, legalização regulada e fiscalizada da maconha. E os impostos sobre ela poderiam ser maiores que os incidentes sobre álcool e tabaco, assim como os enormes recursos hoje empregados para combater seu tráfico seriam poupados, ou empregados de forma bem mais compensadora.

Alega-se que a circunstância de o álcool, o tabaco e as drogas de farmácia serem legalizados não significa que precisamos de outra droga legalizada. Também verdade, não precisamos, mas ela é uma realidade inelutável. Não se trata de reconhecer uma necessidade, trata-se de enfrentar um problema da maneira mais eficaz. A maconha está aí e não vai embora. Se se deseja combatê-la, deve-se pensar no mesmo tipo de combate que se faz ao álcool e ao tabaco, talvez submetendo-a a restrições ainda maiores que as dos dois, mas não a empurrando para o tráfico. O que se faz hoje é gastar somas cada vez mais vultosas com algo que podia custar muitíssimo menos, em dinheiro e mesmo vidas, e ser pelo menos razoavelmente bem administrado.

A cocaína também não vai embora. Quem acha que o combate à cocaína será um dia vencido, com a (inviabilíssima) erradicação das plantações de coca ou com preços excessivamente altos, causados pela repressão, não leva em conta que se trata de um composto químico sintetizado há muitos anos. O laboratório precisa ser bem equipado, mas um químico bom de sintetização ou sabe ou pode espiar na internet como é que se produz cocaína. Assim que o preço começasse a compensar, é óbvio que surgiriam profissionais e capitais interessados, pois sempre há interessados em fornecer o que é bem pago.

Mas cocaína, droga pesada capaz até de matar mais ou menos instantaneamente, não é de fato maconha e sua legalização resultaria bastante complicada. Contudo, não deixa de ser caso a pensar a possibilidade de que, através de um planejamento complexo, envolvendo receitas médicas controladas, farmácias habilitadas, monitoração por uma base de dados informatizada e outras salvaguardas, ela venha a ser comerciada e consumida legalmente, como já foi. Claro, logo apareceriam compradores de receitas e médicos inescrupulosos que as venderiam. Certamente, e até mais que isso, mas aí é a mesma coisa que em relação ao consumo de drogas: não tem jeito, o ser humano não falha.

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Ao que parece, o ser humano (quase escrevo “serumano”, neologismo que, quem sabe, pode vir a ser adotado, pois outro dia ouvi na TV que um casal era “dois serumanos”) precisa, pelo menos de vez em quando, alterar sua percepção da chamada realidade, mexer com a própria mente e as emoções. Prisioneiro de seus cinco limitadíssimos sentidos, não consegue perceber, em condições normais, aquilo que suspeita ou sabe existir além deles. E quer sair da prisão, quer sensações que ordinariamente não estão a seu alcance. Outra necessidade, que corre paralela, é alterar o comportamento habitual e quem for tímido tornar-se extrovertido, quem for melancólico tornar-se alegre, a moça que hesita em dar resolver dar e assim por diante.

Para obter esses estados alterados de percepção e comportamento, o famoso ser humano não usa somente drogas. Muitos lhes devotam aversão ou medo e recorrem a vias diferentes. Se forem poetas, poetam; se não forem, embarcam na poesia pelas mãos dos poetas. Ou veem o mundo pelos olhos dos pintores e fotógrafos. Ou meditam, ou contemplam a natureza, ou ouvem música, esta última considerada por alguns tão potente que Platão, por exemplo, a baniu de sua República. Aliás, não falta quem condene a música, ou certos tipos de música, por crer que ela induz à depravação e à expressão de temíveis baixos instintos. E, como as experiências com esses alteradores da consciência não são excludentes entre si, o ser humano desfruta de várias delas, entrando no que se designa genericamente como “barato”.

Os baratos, de mil e uma formas e em mil e uma nuances, podem ocasionar diversos tipos e graus de transtorno, não só em quem os experimenta como naqueles que com este se relacionam. Não há de ser outra a razão por que tantos deles são proibidos e têm o comércio, ou mesmo uso, das drogas que os causam punido até com a morte. Não obstante, com toda a repressão, as drogas proibidas continuam a ser vendidas e existe muita gente que acha que seu barato vale o risco de uma longa prisão ou de execução. Não vem ao caso especular sobre as razões para isso, mas cabe um raciocínio econômico singelo: é fenômeno universal a oferta aparecer assim que aparece a demanda. Havendo nariz para cheirá-lo, haverá pó.

Ou seja, enquanto existir demanda, existirá quem forneça drogas. Não há nenhuma novidade nesta constatação, mas a guerra ao narcotráfico, contrariando todas as evidências, continua a tentar neutralizar a oferta e nada faz quanto à demanda. Esta jamais deixará de existir, mas pode, por uma fração mínima do que se gasta em repressão, ser razoavelmente controlada. Então por que será que verdade tão patente é descartada? Por que será que se continua a mover essa sangrenta guerra, tão vã e, sobretudo, tão dispendiosa?

Porque não interessa vencê-la e muito menos acabá-la. Quem pensa que interessa somos nós, o otariado. Não me refiro a indivíduos, mas ao que pode ser chamado de “sistema”. Existe um vastíssimo sistema relacionado à repressão ao narcotráfico, composto não só pelas polícias genéricas e especializadas, mas por todas as estruturas criadas para colaborar nessa repressão. É a lógica de sua existência, através da qual têm sido mantidas e são diuturnamente ampliadas. Nacional e internacionalmente, esse aparato, que envolve desde ministérios e forças armadas a polícias de aldeias, tem como premissa que se deve combater um inimigo que se sabe que nunca será vencido, combate este com um número cada vez maior de frentes e custos cada vez mais elevados.

Claro, não é apenas esse mostrengo, cujo aparato intrincado e labiríntico não dá para ser inteiramente mapeado, que resiste, funcional e corporativamente, à mudança. O interesse sistêmico em manter-se tem que ser levado em conta, mas ainda maiores que ele são os interesses dos fornecedores, diretos e indiretos, de equipamentos e serviços. Corre muito dinheiro na guerra contra o tráfico e cairá o queixo de quem apurar na ponta do lápis o custo total apenas da operação do Alemão e sua manutenção com tropas federais. Os produtores e vendedores de armamento têm vivido grandes dias no Rio de Janeiro, o mercado só tende a ampliar-se, até mesmo com a propaganda.

Muito mais dinheiro ainda é movimentado pelo tráfico, que repassa seus custos ao consumidor, como é a prática empresarial de praxe. Se não houvesse repressão, esses custos baixariam vertiginosamente. Quem perderia? Não somente os vendedores de armas e equipamentos bélicos, mas os corruptos de todos os níveis e quilates. Para quem pensa que isso é coisa de Terceiro Mundo, lembre-se a corrupção policial nos Estados Unidos, durante a vigência da Lei Seca. E, somente em Nova York, os casos de corrupção policial envolvendo drogas fazem parte de um prontuário considerável. Em alguns países, a corrupção nem ao menos tenta manter as aparências, como muitas vezes ocorre aqui, mas é institucionalizada e contamina toda a cadeia a que se vincula.

A corrupção está disseminada em toda parte, não somente no sistema brasileiro, como no do mundo inteiro, em maior ou menor grau. Se não houver tráfico e a guerra santa contra ele, onde ficarão os ganhos dos corruptos, que não terão por que exigir comissões, subornos e propinas? É tolerável perder essa fonte de renda, em muitos casos milionária? Receio que não, e o mercado continuará a funcionar esplendidamente, para a felicidade harmoniosa de seus agentes, num entrelace delicado, em que o traficante agradece à repressão por lhe proporcionar um ramo de negócios lucrativo, a repressão e seus instrumentos agradecem ao traficante por fazê-los prosperar e o corrupto agradece a ambos pelo rico dinheirinho a ser malocado em contas secretas. “O mundo é perfeito”, sempre diz meu amigo Benebê, em Itaparica. Isso mesmo.

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“Privacidade” é uma palavra recente na língua portuguesa. Quem a procurar num dicionário velho, aí de seus 30 ou 40 anos para cima, não vai encontrá-la. Antigamente se usava “intimidade”, que, na minha opinião, quebrou bem o galho durante muito tempo. Não obstante, do mesmo jeito que muitas outras palavras nossas, “intimidade” teve todos os seus anos de bons serviços ignorados e foi amplamente substituída, via Estados Unidos, por uma inglesa de som e uso considerados chiques, como ocorre entre nós em relação a qualquer coisa em inglês. “Privacidade”, aportuguesamento de “privacy”, já foi naturalizada e correm bem longe os tempos em que seria xingada de anglicismo e, se usada numa prova escrita, baixaria a nota. A bem da verdade, ela não deixa de comportar-se como uma boa cidadã brasileira e talvez mereça a popularidade que obteve, talvez nós estivéssemos precisando dela mesmo.

Com a palavra, tudo bem, vida longa para ela, mas a condição que ela designa pertence cada vez mais ao passado. Ou melhor, já pertence ao passado, assim como a agora vingada “intimidade”. Juntas, vão fazer parte das recordações de antigamente – o tempo em que existia um negócio chamado privacidade ou intimidade, o qual, suspeito eu, vai ter que ser explicado à geração que hoje é bebê. E, a julgar pelo que vejo em torno, muita gente, talvez a maioria, adere alegremente ao desprestígio crescente da privacidade e de sua colega intimidade. Não só não damos importância ao que fazem para violar nossa privacidade, como nos esforçamos para abdicar dela.

Há quem acredite que certas áreas, como a vida financeira e econômica de cada um, ainda são protegidas. Faz uns três dias, dei uma espiada na relação dos que têm (ou tinham, não vem ao caso, pois indica a experiência que voltarão a ter) acesso a dados dos contribuintes junto à Receita Federal e havia até estagiários. Não custa imaginar que estaria perto a autorização dos síndicos de edifícios de apartamentos, para fuçar a vida dos condôminos. Para não lembrar que já se falou em tudo quanto é tipo de vazamento na Receita Federal. Mas vamos continuar dando um crédito de confiança, que, aliás, é o único crédito nosso que podemos dar à Receita, porque o resto ela já tomou.

Até os bancos suíços, onde qualquer grande ladrão, traficante de droga ou governante corrupto tinha seu dinheiro imundo recebido com circunspecção, recato e maneiras finas, sem perguntas deseducadas e sem impostos penosos e, acima de tudo, sob sigilo impenetrável, até esses vêm sendo atacados. O venerável princípio segundo o qual a respeitabilidade de um homem é definida por quantos milhões de dólares ele tem está sofrendo golpes rudes, partidos notadamente, segundo leio aqui, dos americanos. O fisco americano, diz aqui, está torcendo o braço dos bancos suíços para que liberem dados de cidadãos sob sua jurisdição. Há ameaças de brecar as operações desses bancos nos Estados Unidos, se eles não atenderem aos pedidos de liberação. Verdade que rico ri à toa e que muitos espertos vão conseguir safar-se, mas o mundo não será mais o mesmo sem bancos suíços para higienizar, preservar e fazer render dinheiro sujo. Quanto a quem tem dinheiro aqui mesmo, sabe-se que a informação já está fartamente acessível, não só para os muitos que podem vê-la na Receita Federal, como em camelôs em São Paulo e no Rio, em CDs, ou, se se desejar gastar mais um pouco, documentos já impressos. Ou então se usa alguém de prestígio para mandar o banco quebrar o sigilo bancário do vizinho, do sogro, do marido ou do patrão. Dá para fazer numa boa, como já fez um ex-ministro cujo nome me escapa no momento, mas vocês hão de recordar.

Fora das finanças, acho que a coisa está bem mais aberta, porque a colaboração geral é entusiástica. Nas chamadas redes sociais na internet, milhões (ou bilhões, sei lá) de devotos acreditam que estão recebendo serviços de graça e que, por conseguinte, os donos dessas redes estão ganhando quaquilhões de dólares extraindo-os do ar e não dos bolsos da freguesia. Eles estão, claro, é faturando anúncios e, acima de tudo, coletando dados pessoais de toda espécie, que lhes proporcionam estratégias de mercado capazes não somente de vender a bagulhada que produzem ou a que se vinculam direta ou indiretamente, como também de criar necessidades antes inexistentes, para que se comerciem ainda mais bagulhos, num processo interminável. Não custa nada lembrar um axioma conhecido em cibernética: “Informação é controle.”

Grande parte dessa massa manipulada quer ser manipulada, porque expõe, sua vida a torto e a direito, em proporções que não parecem conhecer limite. Não é apenas na internet que se divulgam intimidades antes preservadas, é em qualquer lugar. Já ouvi casais tendo a famosa discussão da relação, em celulares que, no modo viva-voz, faziam com que os circunstantes escutassem tudo. E senhoras e senhorinhas entrevistadas discorrem a leitores ou espectadores sobre posições sexuais, preferências de parceiros, higiene pessoal ou depilação púbica e perianal, quando não tomam parte em mesas-redondas de depoimentos pessoais íntimos – o que antes era confissão hoje é papo casual.

Segredos antigos desaparecem, velhos mistérios não são mais arcanos, não há mais inocências a proteger. Para evitar a exposição ao que se exibe em toda parte, só recolhendo o bebê a um mosteiro trapista, logo após o desmame, aos 6 meses de idade. Não se pode censurar livros recomendados a crianças ou adolescentes, pelo motivo descabido de que mostram aspectos de um mundo vivido por todos, inclusive por eles, que veem bem mais do que os adultos suspeitam. Não há como esconder mais nada. E, dessa forma, é preciso que eles também tenham a chance de ver este mundo através da sensibilidade literária. Principalmente porque isso os ajudará a compreender que há escolhas.

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Pelo menos no meu caso, a leitura dos jornais vem provocando uma leve tontura, por vezes não tão leve assim. Estou seguro de que os governantes eleitos não pensam em outra coisa que não o bem-estar da coletividade, pois haverá de ter sido esse ideal o que os moveu a candidatar-se, enfrentando a canseira, o estresse e a despesa de uma campanha, para depois padecer sob a rotina estafante e ingrata da vida pública. Sabemos que, até neste talvez enganosamente sereno domingo, estão ocorrendo reuniões pressurosas em todos os cantos do País, buscando o que fazer para começar desde já a trabalhar pelo bem comum. Também sabemos que os eleitos estão agora mesmo se debruçando com afinco sobre diagnósticos, estudos e planos para a solução dos problemas nacionais, querem trabalhar, querem fazer por nós tudo o que prometeram e mais alguma coisa.

Deve ser essa a causa da tontura, que possivelmente atinge alguns de vocês também. Pois não é que, embora saibamos de tudo isso, a leitura dos jornais dá impressão bem diversa? Vai ver, é mais uma armação da marvada mídia, tão frequentemente denunciada. Pois a sensação que se tem é de uma sarabanda frenética, açodada e agoniada de cadê-o-meu, como-é-que-é-o-meu-aí, dê-cá-meus-cargos, quanto-eu-levo-nessa e meus-cinquentinha-por-cento-de-aumento. Fazer alguma coisa pelo povo vem depois, primeiro é preciso o fazedor se fazer, dentro do conceito de servir à pátria atualmente em vigência. “Servir” e “pátria” continuam as palavras-chave, só muda a regência verbal, um pormenor. Não é “servir à pátria”, com essa crase enxerida aí, é “servir a pátria”, preferivelmente numa baixela de prata. Ou, caso mais encontradiço, “servir-se da pátria”. A gramática é maravilhosa, todos deviam estudá-la.

Obra perversa da mídia ou não, o que vemos aqui é o exato oposto da famosa exortação do presidente Kennedy aos americanos, quando ele disse “não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer por seu país”. A originalidade brasileira impôs à frase de Kennedy o que Zecamunista me descreveu como “revertério dialético” e aqui todos primeiro querem saber o que o País pode fazer por eles, preferivelmente em dinheiro. É colegiado pra lá, diretoria pra cá, jetom pra acolá, estipêndio, verba, subsídio, numerário, função gratificada, cargo em comissão, cofrão, sacolão, dotação, gratificação, diária, ajuda de custo, auxílio-qualquer coisa, tudo sendo disputado palmo a palmo, numa exibição grotesca e despudorada que, de tão repetida, já nem é notada. E quem reclama é ainda desdenhosamente chamado de moralista, classificação, neste caso, aplicável a quase todo o Código Penal.

E o que poderia ser interpretado como uma notícia amena, agora desperta preocupação. Vocês também devem ter lido nos jornais que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou um novo direito para nós, brasileiros: o direito à busca da felicidade. Não falta muito para entrar na letra da nossa sempre prestigiada Carta Magna. Não é assim muito original, porque vem da Declaração da Independência americana, novidade de 1776. Mas não deixa de ser engraçadinho, maneiro para citar em discursos de posse, formatura, inauguração e movimentos por melhores condições de trabalho. Também serve para adesivos de para-brisas, camisetas e circulares pela internet com os dizeres “Ser infeliz é inconstitucional”. E há de ter outros proveitos, vivemos uma época muito inovadora.

Mas, sem querer ser espírito de porco, não posso deixar de lembrar que, hoje em dia, iniciativas para ditar nossa conduta e até nossas opiniões estão ficando cada vez mais comuns. Existem autoridades, em todas as áreas, convictas da existência de um “certo” absoluto para praticamente tudo na vida, desde comer até educar um filho, e esse certo nos deve ser imposto para nosso próprio bem, mesmo que discordemos. De forma semelhante ao que acontece com o moralismo, a acusação aos que se opõem a esses “certos” é a de ignorância e reacionarismo pernicioso.

Aparecerá algum parlamentar que proporá a regulamentação de tão básico direito. Na ausência de uma lei que lhe dê condições de aplicação, o preceito constitucional pode não ter eficácia alguma. Mais ainda, o que é de capital importância, pois sem isso nada aqui vai em frente, a lei regulamentadora resultará na geração de empregos e até mesmo de novos campos do saber. A primeira providência será a criação de uma comissão de notáveis para elaborar um anteprojeto em que se definam não só a felicidade, como os meios lícitos para atingi-la, não devendo, por exemplo, admitir-se o assalto, excetuado, como hoje, o assalto aos cofres públicos, pelas vias consagradas em nosso direito consuetudinário. Não será, com certeza, tarefa simples e já posso antecipar com vivo interesse eletrizantes debates entre, digamos, epicuristas de esquerda e estoicos de direita. A felicidade é uma sucessão contínua de prazeres? É uma casinha pequenina, com gerânios em flor na janela? É uma bela mamata ou suculenta sinecura?

De acordo também com o uso atual, haveria ampla consulta popular, com a subsequente incorporação de dispositivos que levassem em conta a felicidade de minorias e excluídos. E, enfim, depois de muita labuta e controvérsia, teremos o Código da Felicidade e a Agência Nacional da Felicidade, permanente gestora de toda essa área. Serão emitidas normas para a correta felicidade e talvez se crie um juizado especial, para os delitos contra a busca da felicidade. E pode ser que a felicidade venha a ser mais ou menos como o voto, um direito e um dever. Um direito por cujo exercício pagaremos imposto; e um dever por cujo descumprimento pagaremos multa. Confere.


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Há quem sustente que, em janeiro de 1890, Itaparica ainda não tinha certeza de que a República fora proclamada no ano anterior, notadamente o filósofo e tribuno Nabucodonosor Pontes Ferrão, autor de valente discurso intitulado “Onde se encafurna ela, que não aparece?”. Com essa alocução, pronunciada no Largo da Quitanda, em arroubado improviso ornado de lindas ordens inversas, e tida por alguns como apócrifa, mas não obstante ainda venerada como peça de estilo e civismo, o orador, segundo se diz, chegou a convencer grande parte de seus concidadãos de que a República não existia, era uma invencionice de poetas, desocupados e loroteiros.

Para tornar a história completa, deve acrescentar-se que ele classificou a tão comentada República de “mero factoide”. Eu, que nunca tive acesso direto ao documento, estranhei o uso dessa palavra, mas Jacob Branco, ele próprio notável orador e estudioso da vida e obra de Nabucodonosor Ferrão, garantiu que o termo já era usado desde o tempo em que o padre Vieira xingava os hereges na Catedral da Bahia e que seu emprego recente, como palavra do Sul do País, configura mais um furto filológico, dentre os muitos de que Itaparica sempre foi vítima. E até hoje é um argumento válido, assinala Jacob, porque a República de fato continua a aparecer muito pouco na ilha, tendo-se escassa notícia dela, a não ser na hora de pedir os votos e cobrar os impostos. No mais, que se saiba, continua encafurnada, só que agora em Brasília.

Fato ou factoide, Jacob também me assegurou que, em 1890, as comemorações do Sete de Janeiro, data em que celebramos a verdadeira independência brasileira, pois foi quando acabamos de correr a tapa o opressor lusitano, sucederam em clima conturbado. (Não queremos desmerecer ninguém, mas esse negócio de independência no grito é mole, na ilha foi que o pessoal teve de sair no braço). Realizaram-se em meio a um racha inconciliável, entre os que pretendiam continuar a homenagear o imperador nos festejos, como era da tradição, e os que se anunciaram como prepostos ou representantes da tão falada República e só queriam saber de marechal pra lá e marechal pra cá. Fizeram dois cortejos, ambos desfilando debaixo dos apupos, cacetadas e pedradas dos opositores, e dizem que certas famílias da ilha que até hoje não se dão bem começaram a rixa por ocasião desse mencionado Sete de Janeiro.

Estamos já bem longe desses tempos e os poucos monarquistas que restam na ilha limitam suas atividades subversivas a reuniões secretas que todo mundo sabe que são às quintas-feiras, depois da novela, na casa de Bertinho Borba, que até hoje não desistiu da ideia de ser nomeado barão. Desde aquele 1890 que eles nunca esquecem, os monarquistas, como acho que já contei aqui, estão tentando redigir, sem concordar nem nos termos nem na gramática, um convite endereçado ao futuro rei da ilha, cujo nome é também objeto de intensa controvérsia, pois uns querem um português d. João ou d. Pedro legítimo, outros querem um holandês, outros querem um japonês rico e assim por diante, não há acordo à vista.

Quanto ao proverbial homem da rua, ou popular, na ilha, creio que uma pequena entrevista com Azeda, que continua muito empertigado e elegante, sempre desfilando de chapéu armado com uma inclinação meio malandra, é esclarecedora. Azeda declarou-se inteiramente favorável a tudo o que lhe perguntaram, mesmo quando isso rendia algumas contradições. Afinal, ele era contra ou a favor da República? Houve hesitação, mas foi breve.

– É o seguinte, bote aí – disse Azeda. – Eu estou com o Homem. Minha posição é clara. Bote aí: minha posição na República é com o Homem.

Diante de postura tão resoluta, não creio que haja grandes manifestações amanhã. É duvidoso que Ari de Maninha, orador junto ao qual até Jacob Branco é calouro, venha a fazer sua costumeira palestra alusiva à data, no bar de Espanha, até porque Espanha rechaçou a ideia, apresentada pela comissão dos festejos, de conceder um desconto de 15 por cento na cerveja. (“É 15 no 15!”, inspirado slogan de Ari de Almiro, em feliz referência simultânea ao 15 de novembro e aos 15 por cento do desconto, mas, ao que parece, Espanha não é muito sensível ao marketing moderno).

De qualquer forma, o 15 de novembro nunca foi mesmo muito prestigiado na ilha, nem sequer entre os mais progressistas e esclarecidos. Persistem na memória de seus discípulos ainda vivos os ensinamentos de Waltinho Filósofo, o pranteado fundador da Escola Filosófica do Sorriso de Desdém, que disse que a República, como todas as demais obras do homem escravizado ao homem, só merecia mesmo um sorriso de desdém. A única vantagem dela sobre a monarquia era que tinha propiciado um grande aumento de gente para se xingar e se indicar para o inferno – às vezes Waltinho era um tantinho radical. E talvez tenha também pegado trauma de República, porque, pouco antes de fundar a escola do Sorriso de Desdém, tentou montar a República de Platão na ilha, ele e os discípulos desfilando para lá e para cá com coroas de folhas de pitanga e enrolados em lençóis sem nada por debaixo, porque não consta que Sócrates usasse cueca. Mas essa República não foi bem compreendida pelo delegado, de maneira que podemos dizer que se tratou da última grande experiência republicana em Itaparica. E creio que o resto pode ser resumido na postura de Azeda. Quando ele repetiu que estava com o Homem, alguém lembrou que agora não vai ser mais homem, vai ser mulher.

– Então bote aí: eu estou com a Mulher. Vocês não me pegam, minha posição na República é com a Mulher, aqui pra vocês todos, eu também sou filosófico.

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