Feeds:
Posts
Comentários

Archive for the ‘João Ubaldo – 2012’ Category

Como acho que já contei aqui, meu primeiro emprego, aos 17 anos, foi em jornal, na época em que não havia escola de comunicação e a gente tinha de aprender no tapa, ouvindo esbregues dos superiores (ou seja, todo mundo na redação, porque o status do foca equivalia ao de um recruta dos Fuzileiros Navais) e imitando os veteranos que mais admirávamos ou invejávamos. Fui um repórter esforçado mas bisonho, e desconfio que, nos primeiros tempos, só não me demitiram porque eu falava inglês e quebrava o galho da cobertura local, entrevistando os gringos que se hospedavam no velho Hotel da Bahia, então o único de nível internacional em Salvador.

Sobrevivi a esses duros tempos e cheguei a exercer, um par de vezes, uma função que não existia nos organogramas, mas era comum, a de redator de tudo. Ou redator de qualquer coisa, como se preferir. Não tenho grandes saudades dessa condição, que me levou a escrever horóscopos, reclamações de leitores contra a prefeitura, resenhas de livros, explicações sobre como votar nas próximas eleições, discursos (do patrão, é claro) para o Rotary Club, notas para inserir na coluna social, obituários, editoriais e o que mais fosse enviado a minha mesa. Mas sou obrigado a admitir que, para quem vive de escrever, como eu, foi um treinamento precioso, que já me possibilitou enfrentar vacas magras aceitando encomendas para escrever o que lá fosse – e hoje creio que só não redigi bula de remédio, sinto até falta de uma, em meu currículo. O resto eu fiz, de receitas de cozinha (Receitas do Giuseppe era o título da coluna; e o Giuseppe, vergonha mate-me, era eu) a manuais do usuário.

Devo ter escrito dúzias de artigos, crônicas, editoriais e assemelhados (sim, esqueci de mencionar que também escrevi mensagens de Natal e boas festas para cartões de empresas e para uma folhinha de padaria), a respeito do Natal e do fim do ano, ou começo do novo. Pensando bem, devem ser grosas e não dúzias, porque, mal a gente saía do “… que este Natal seja um verdadeiro momento de concórdia, entre homens de boa vontade” e já tinha de tascar o “… que este ano que se inicia traga com ele a paz que a Humanidade não tem conseguido alcançar”. Um dos poucos competidores das categorias Natal e ano-novo eram o “Evoé, Momo” e sua sequela “Cinzas”, em que, respectivamente, concitávamos os cidadãos a uma folia sadia e sem excessos ou violência e meditávamos na quarta-feira sobre a fugaz condição humana, sem deixar de deplorar, en passant, os miasmas de xixi evaporado que se evolavam das ruas centrais de Salvador após o tríduo momesco, lastimável consequência de falta de espírito cívico e do desaparelhamento sanitário da cidade.

Este ano, tivemos a onda que fizeram com o fim do mundo de acordo com os maias. Também não há nenhuma novidade nisso, a não ser para os muito jovens. Não lembro se já escrevi algum editorial sobre o fim do mundo, no que espero haver manifestado opinião contrária. Talvez tenha escrito, sim, no tempo da Guerra Fria, quando se temia que a Terra fosse pulverizada, até mesmo por algum governante louco ter apertado os botões errados. E, de tempos em tempos, aparece alguém anunciando o fim do mundo e, juntamente com o papa-figo, foi até um dos primeiros medos de minha infância, infundido pelas histórias de dona Antônia, quando eu morava em Aracaju. Dona Antônia era uma senhora de Muribeca, interior de Sergipe, que veio pedir uma ajuda a meu pai, se instalou numa das casinholas do quintal e ficou agregada durante uns três ou quatro anos, até minha família voltar para a Bahia.

– O primeiro fim do mundo foi ainda quando os bichos falavam e todo dia caía maná do céu, bastava rezar – explicava ela a sua mesmerizada plateia infantil. – Mas aí o povo foi ficando cada dia mais pecador, se fartava de maná e não queria mais nem ter o trabalho de rezar, só pecando, só pecando, só pecando, até que um dia Deus se aborreceu muitíssimo com essa situação, cortou o maná para sempre e chamou São Noé para conversar, numa grande montanha perto do Céu. Me compreenda uma coisa, disse Deus a São Noé, estou muito aperreado com tanta pecação e resolvi tomar uma atitude, de maneira que vou acabar o mundo, só me dá desgosto. Me faça uma grande arca de navegação, bote um casal de cada bicho dentro, embarque com a família, tranque tudo e espere, que não vai mais chover maná, vai chover é água mesmo, até encharcar e afogar tudo.

Acontecia, porém, que esse primeiro fim do mundo não havia sido suficiente para que os homens parassem de pecar e aperrear Deus. Pelo contrário, era pecado em cima de pecado, uma coisa demasiada mesmo, de maneira que se sabia que, mais cedo ou mais tarde, viria novo fim de mundo, desta feita pelo fogo e não pela água. Segundo dona Antônia, será o fim do mundo de São Pedro, até hoje não sei por quê, talvez por causa das fogueiras do dia do santo. Menino, naquela época, era muito mais besta que atualmente e continuei com certo medo de o mundo pegar fogo até a adolescência.

Hoje o medo passou, até porque não adianta, e me resta consolo na crença geral de que, quando o mundo acabar, lá em Itaparica só vamos saber uns cinco dias depois. E é claro que o início do ano não passa de uma convenção arbitrária que nem mesmo se tornou universal, pois outros povos usam datas diferentes da nossa. Mas não vamos pretender filosofar sobre essas coisas, já bastam os slides em Powerpoint que nos mandam pela Internet, com textos cujos autores mereciam uma condenação às galés. Este ano, me distraí e não desejei feliz Natal aos pacientes leitores. Então desejo um feliz ano-novo e, orgulhosamente, chamo a atenção para o fato de que enrolei, enrolei, fiz uma finta ali e acolá e acabei produzindo mais uma crônica de feliz ano-novo.

Read Full Post »

Há quem acredite que exagero, quando falo nas muitas excelências de Itaparica, tanto as presentes quanto as passadas. Mas é uma impressão falsa, porque, embora não possa ignorar esses grandes predicados, procuro sempre ater-me à imparcialidade e fidelidade aos fatos que devem nortear o bom jornalismo informativo. Agora mesmo, diante dos acontecimentos nacionais, sou o primeiro a reconhecer que carecemos hoje de juristas capazes de prestar uma contribuição significativa aos debates em curso. Bem verdade que, se tivessem anel no dedo, Ary de Maninha e Jacob Branco botariam num chinelo muitos desses advogadecos mal-acabados que por aí abundam, mas o fato é que, pelo menos que eu saiba, ninguém na ilha pode alegar notório saber jurídico e pleitear ser ouvido sobre questões constitucionais. O que não impede, naturalmente, que se registre um pronunciamento marcante ou outro, como o do citado Ary de Maninha, na happy hour das nove da manhã, no Bar de Espanha.

Os nobres amigos leram? — indagou ele. — Uns porretas aí dizem que a interpretação da Constituição pelo Supremo está errada e que o Supremo não é a única interpretação que vale! A que vale é a deles! Vale a de todo mundo! Cada um chega lá e diz que a Constituição estabelece o que ele quer, pra que Supremo? Meus caros amigos, Ruy Barbosa acaba de ganhar o apelido de Ruy Carrapeta, de tanto que rola na tumba! Não cumprem a decisão do Supremo e passamos a ter o nome oficial de República Esculhambativa do Brasil, ninguém mais vai cumprir merda nenhuma e as decisões do Supremo doravante serão encaminhadas aos deputados, para ver se eles concordam. Por que não resolvem logo que pra deputado a Justiça não vale? Por que não acabam logo com juiz, tribunal, essas coisas? Vamos criar a Deputança Judiciária! Vamos criar o Judiciário Cidadão! Cada um é livre para interpretar a lei como quiser. Eu dou uma dedada no seu traseiro e declaro que, na minha interpretação, a lei me dá direito a isso. Dá direito ao urologista, por que não dá a mim? Eu digo que meu direito de ir e vir não está sendo respeitado e aí exijo passagens de graça para onde eu quiser, na minha opinião a lei garante! Manolo, eu estou quase morto de sede! Se você não me der uma cerveja de graça pra eu me hidratar, é omissão de socorro! O sentenciado resolve se aceita a sentença! Oh baderna, baderna, mixordieira deusa do atraso, aqui nos entregamos nós de uma vez por todas, acolhe-nos em teu regaço impudente, afaga-nos com tuas mãos mensaleiras, beija-nos com teus lábios prevaricadores!

Mas, apesar da pungência dessa rendição, a ilha permaneceu irresignada a ficar à margem dos acontecimentos. Depois de uns três dias de recolhimento, durante os quais quem passava por sua calçada ouvia lá de dentro apenas uma ou outra voz de mulher num momento de alguma exaltação, Zecamunista emergiu na saída da rua dos Patos, sobraçando várias pastas de papelão e, passo firme e queixo empinado, se dirigiu ao Bar de Espanha. Enganaram-se os mexeriqueiros que haviam atribuído os gritinhos femininos a mais uma reunião do Cialis, não o remédio, mas o Centro Itaparicano de Amor Livre Socialista, de que Zeca é secretário-geral perpétuo e que promove periodicamente o que ele chama de encontros motivacionais e o pessoal despeitado, invejoso e reacionário chama de outras coisas, todas impróprias. (Aliás, Zeca sustenta que o nome do remédio é plágio e de vez em quando ameaça abrir processo; diz que todas as coroas do Recôncavo testemunhariam a favor dele, pois muitas delas já se beneficiaram do Centro e são sócias atuantes, contribuintes e até sócias atletas). Os gritinhos eram das voluntárias que se ofereceram para ajudá-lo na formulação de seus planos, ao terminarem alguma tarefa importante.

— Resolvi dar uma mão à burguesia mercantil local, a crise não ajuda ninguém — disse ele, alisando a papelada. — Está tudo detalhado aqui, vou encaminhar à Associação Comercial. As circunstâncias já nos fizeram perder uma oportunidade histórica, mas outras estão se abrindo é só saber enxergar.

Tudo começara com a ideia de oferecerem na ilha acomodações adequadas para a reclusão dos condenados classe A. Essa ideia foi logo encampada por outras cidades Brasil afora, todas sentindo o potencial mercadológico de uma jogada dessas. A ilha bobeou e vai perder a oportunidade, tinha de ter atirado com todas as armas, era preciso ter unido a Bahia em torno desse manancial turístico incalculável, que iria beneficiar todo o estado, além de elevar sua autoestima, por hospedar tantos nomes nacionais. Ele já tinha escolhido o sobradão para a nova cadeia, já tinha orçado a reforma, a decoração e as instalações, tudo para inspetor nenhum, nem repórter nenhum, de onde lá fossem, botar defeito. Mas faltou visão, faltou agilidade, a ilha vai ficar fora dessa. Cadê a classe hoteleira, cadê as agências de turismo?

Infelizmente, a batalha está perdida para competidoras infinitamente mais ricas e poderosas e a vencedora vai ser uma cidade paulista, isso se não abrirem uma concorrência internacional e as Bermudas, Taiti ou Ibiza não ganharem. Mas o serviço que ele criara, não! A ilha pode sair na frente e a complexa estratégia já estava traçada. A ilha vai oferecer serviços de protestos, passeatas e manifestações diversas com toda a infraestrutura, tudo profissional de alto nível. O freguês especifica a manifestação que quer, faz-se um orçamento e se providencia tudo. Bastou ele ter dado uma sondada e já tinha sentido a possibilidade de pelo menos duas boas manifestações contra o Supremo, logo no começo do ano. Uma firma de São Paulo telefonou querendo saber datas para o verão, tem muita grana nisso, o mercado está aquecidíssimo.

— Agora é assim — disse Zeca, com aquela risadinha bolchevique. — Não gostou, faz umas boas manifestações e vira o jogo. É a nova democracia.

Read Full Post »

Desculpem-me por falar na ilha tão seguidamente, mas é que acho que algumas novidades de lá apresentam certo interesse, diante da delicada conjuntura nacional. É o caso dessas graves questões de direita e esquerda, agora trazidas à baila o tempo todo, para vexatória confusão de grande parte da coletividade — e os cidadãos da ilha não são exceção. A baralhada vem logo de cima, porque o ex-presidente Lula já disse que nunca foi de esquerda, mas agora parece que as coisas mudaram e, no momento, ele é de esquerda e não abre, e quem não está com ele é de direita. Como bem observou Beto Lindo Olhar, num raro momento de exasperação, assim fica difícil até puxar o saco.

Justiça seja feita, a confusão já vem de muito longe. Lembro o tempo do finado Naninho Balaio, muito mais comunista do que Zecamunista hoje em dia. Bem verdade que Naninho não regulava bem da ideia e cansou de ir à praia de terno preto e gravata, mas ninguém pode negar que era comunistíssimo e completamente de esquerda, até porque não nasceu canhoto, mas treinou anos a fio e acabou conseguindo fazer tudo com a mão esquerda, só usando a direita em último caso. Também dizem que aprendeu a falar russo, mas ninguém entendia russo nem nunca apareceu um russo na ilha, de maneira que a controvérsia jamais foi esclarecida. E também comentam que ele fugiu para Moscou ambicionando embarcar num Sputnik, mas isso é amplamente desmentido pelo fato notório de que acabou seus dias como gerente de um estabelecimento de Nazaré das Farinhas denominado Lupanar do Moura, onde distribuía aos clientes um cartão de visitas: “Hernani M. Balaio — Lupanar do Moura Ltda. — Mulheres-Damas, buffet ou à la carte.”

Nos círculos esportivos, aonde dificilmente os temas políticos são levaos, é bem possível que, entre os veteranos, a noção de esquerda se restrinja à inextinguível recordação de Chupeta, indiscutivelmente o melhor jogador de futebol que todos já viram em ação, não excluindo disso nem Pelé, nem Messi, nem ninguém. Chupeta lembrava um pouco Maradona, mas isso muito antes de Maradona, que, aliás, ainda que mal me expressando, nunca lhe chegou aos pés. Ele escondia a bola no lado de fora do pé esquerdo e saía ciscando pelo campo, até ficar cara a cara com o goleiro e aí dar um passe para quem vinha de trás. Não gostava de fazer gols, achava dar o passe mais bonito, bom de assistir. Compadre Edinho, que está aí e não me deixa mentir, e eu nos juntávamos para marcar Chupeta com toda a deslealdade possível e Edinho ainda jogava um bolo de areia na cara dele, mas assim mesmo ele passava. Sem dúvida, para esse setor de opinião, a esquerda é e sempre será Chupeta.

Que mais? Ah, sim, não podem ser esquecidas as implicações religiosas. Como não se ignora, entre as centenas de alcunhas por que se conhece o Inimigo, está a de Canhoto. Ninguém na ilha tem nada contra os canhotos, mas, por exemplo, todo mundo sabe que o feiticeiro e o mandingueiro do Mal, ao firmarem ou confirmarem seus acordos com Satanás, se persignam com a mão esquerda. Há quem alegue que Padre Ptolomeu, que era de outra paróquia mas veraneou na ilha muito tempo, dava a Bênção dos Canhotos todo ano, borrifando água benta nas crianças canhotas, para ver se elas se recuperavam. Com algumas, funcionava e Mário Gaguinho e Zenóbio Merdinha estão aí mesmo para testemunhar de viva voz, embora enfrentando pequenas dificuldades, porque ambos estão curados do canhotismo, mas ficaram gagos.

Ainda no terreno da fé, a julgar pelo que sempre se disse dos esquerdistas comunistas, eles não devem ser muito boa companhia para o cristão, porque são todos ateus hereges. Hoje em dia o pessoal não liga muito para essas coisas, mas a grande verdade, como lembrou outro dia Ioiô Ranulfo, é que o Santo Papa Pio XII, no tempo sério da missa em latim e do padre de batina, decretou que estava excomungado qualquer um que se misturasse com eles. E Zecamunista mesmo diz para quem quiser ouvir que não acredita em religião nenhuma, embora haja quem assevere que ele se garante dissimuladamente com Santo Antônio e que, apesar da foice e martelo no boné, o que usa por baixo da camiseta são umas continhas de Ogum — ele nega, mas desconversa.

Por aí se vê que grassa forte inquietação entre aqueles que, como Lindo Olhar, querem assumir a postura ideológica correta, seja para exercer o puxa-saquismo com conhecimento de causa, seja para não passar a vergonha da ignorância na frente das visitas. O que é ser de esquerda, afinal? É ser canhoto, é ser a favor do ponta-esquerda como no tempo de Zagallo e Chupeta? É ser herege, quer dizer, tem que ser ateu para apoiar o homem? É ser comunista, o homem é dos comunistas? Por que ninguém aceita ser de direita?

— Bonita pergunta! — exclamou uma voz roufenha à entrada do Bar de Espanha e ninguém precisou virar o pescoço para saber que, inesperadamente mais uma vez, ali estava Zecamunista. Cuidava-se que se encontrava em sua turnê de pôquer de fim de ano, mas, pelo visto, ele já tinha raspado o dinheiro todo dos parceiros e terminara antes do previsto. Na condição de intelectual e calejado político, certamente daria uma resposta definitiva àquelas dúvidas.

— Bonita pergunta, pois me permite um esclarecimento e um conselho prático a todos os conterrâneos que querem subir na vida — ensinou ele. — Direita no Brasil é xingamento, não pega as mulheres, nada de direita. Meu conselho é o seguinte: não interessa o que vocês pensem ou em quem votem, o importante é ser de esquerda, no máximo de centro, que por sinal é meio mal recebido nas festas do Sul do país. E ser de esquerda é fácil, é só concordar com tudo o que ele diz e faz. Como não é o meu caso, me vejo obrigado a admitir que hoje em dia sou um comunista de direita, este mundo é cruel.

Read Full Post »

Da mesma forma que o Bar de Espanha, o Mercado Municipal Santa Luzia, em Itaparica, sempre foi palco de debates sobre todos os assuntos, de biológicos a políticos. Entre suas paredes, ainda ecoam discursos de Piroca Vieira, que denunciava tudo, todos e todas, conferências de Sete Ratos, que testemunhou várias vezes jararacas cruzando com caramurus, narrativas autobiográficas de Gueba, onde ele sempre provava que todo mundo é avariado da ideia, e um sem-número de lembranças de afamados tribunos conterrâneos que já se foram. Os saudosistas se queixam que, depois do desaparecimento de vultos dessa estatura, o Mercado nunca mais foi o ágora de antigamente. Comparado ao dos velhos tempos, hoje seria até uma pasmaceira completa.

Exagero de velhotes inconformados com a marcha do tempo. Pois, ao caminhar o visitante ali por trás da Matriz, bem antes de chegar ao Mercado, não poderá deixar de descortinar ao longe as silhuetas dos debatedores, uns dando passadas dramáticas para lá e para cá, outros exibindo uma quironomia arrebatadora, outros ainda falando de rosto para cima como quem clama aos céus. À chegada, vê-se que os principais oradores são Ary de Maninha e Jacob Branco, quer dizer, jogo duro para qualquer um. É cada anástrofe de entontecer, cada aliteração de repenicar nos ouvidos, cada metáfora de cair o queixo, cada citação de Castro Alves de arrepiar, cada perífrase que mais parece uma serpentina — coisa que só se presenciando para acreditar. A palavra está com Jacob, que, além de orador, é grande estudioso da rica história da ilha.

— A verdade histórica é que a instituição da rapariga — disse ele —, faz parte indissolúvel de nossa mais nobre tradição! O feminismo e outros movimentos deletérios, todos capitaneados por uns merdíocres colonizados, aqui almejando implantar costumes exóticos, querem destruir essa venerável tradição. Sabem os senhores que nossos ancestrais sempre tiveram raparigas e muitos de nós, cala-te boca, somos descendentes de grandes homens com grandes raparigas. Agora estão fazendo essa onda toda com ele, inclusive gente que não tem moral para abrir a boca nesse caso, como se o caso dele fosse alguma novidade. Vamos fazer oposição, mas não oposição desleal! Aqui alguém tem coragem de me dizer que é contra a rapariga?

Antes que Ary, que já estava com aquela cara de águia de Haia que ele faz antes de exibir seus dotes de orador, pudesse iniciar sua intervenção, instalou-se intensa curiosidade e mesmo perplexidade, entre os presentes. Quem era esse de que Jacob falava? Que história era aquela, de que rapariga se tratava, que grande novidade se apresentava, alguém estava estranhando o alguém por ter uma rapariga fora de casa, tudo dentro da normalidade? Anormal e pobre é que não têm e, assim mesmo, muitos pobres se viram direitinho, não envergonham os amigos.

— Pois é — disse Jacob, a voz ainda fremindo um pouco. — Eu sei que ninguém aqui vai acreditar, mas é a pura verdade, saiu em todos os jornais. Está todo mundo esculhambando Lula, porque dizem que descobriram que ele tem uma amante.

— Uma amante só? — interrompeu Alma Roxa, que até então estivera concentrado num mocotó. — Deixe de ser besta, uma só não é nem pra vereador! Você acha que um homem desses vira presidente e não vai papar as mulheres, isso não existe! Triste seria, se ele não aproveitasse, era caso de desconfiar! Ele está no papel dele! O sujeito se elege e vai deixar passar essa oportunidade? Só doido, ali é de artista de cinema pra cima, dá para ele fazer um grande catado no mulherio. Queria eu estar no lugar dele, você ia ver, não ia sobrar uma, era elas chegando, era eu traçando. Não, mentira sua, deve ser outra coisa, rapariga não.

— Rapariga, rapariga.

— Rapariga sustentada mesmo?

— Aí é que está o problema — interveio finalmente Ary, que estivera se coçando o tempo todo para falar. — É porque ela é sustentada por um salário de funcionária pública, não sai nada do bolso dele.

— Mas taí, taí, e era pra sair? Eu pergunto novamente: o sujeito sobe na política, chega até a ser presidente da República duas vezes e não pode conseguir uma simples colocação para o pessoal dele? O indivíduo vai trabalhar pra quê, se não for pra procurar suas melhoras e dos seus? Por que é que ele vai gastar o dinheiro dele sem necessidade? É cada uma!

— Mas não está certo, ele devia sustentar, é o correto. Todos os jornalistas que eu li concordam, ele…

— É a voz dos invejosos e maledicentes, isso tudo é olho grande e despeito, esses jornalistas são todos uns pés-rapados sem ter onde cair morto e, quando pensam que o homem, além de estar por cima da carne seca e com puxa-saco por todo lado, ainda pega aquelas mulheres do Sul do país, aí eles se lascam de inveja e ficam procurando difamar. Agora fazem essas caras de santos do pau oco e cometem essa injustiça com o rapaz.

O dia já estava alto, aí pelas nove horas, quando Alma Roxa encerrou seus comentários. Mas, anunciou ele, agora ia recolher umas assinaturas para o telegrama de solidariedade que resolvera enviar ao ex-presidente: “Cidadãos conscientes da Ilha de Itaparica prestam integral solidariedade Vossência caso rapariga pt Conte conosco.”

— E eu vou oferecer a ele umas instalações aqui — concluiu Alma Roxa. — De repente ele aceita, o mulherio vem todo atrás dele e a gente pega as rebarbas. Eu posso não ser ele, mas sempre fui um homem de visão.

Read Full Post »

Os envolvidos em corrupção e crimes correlatos não foram os primeiros, são herdeiros de uma velha tradição nossa.

Os prejudicados pelo julgamento do mensalão não têm conseguido armar boas defesas, perante a chamada opinião pública. É muito natural que protestem e argumentem, no que, além disso, exercem direito indiscutível. E mais natural ainda é que se eximam de qualquer culpa e procurem outros responsáveis pela trapalhada que aprontaram. Sei, sem ironia, que comparo mal, mas, quando eu era estudante de Direito, a gente visitava penitenciárias e quase todos os detentos nos contavam histórias, às vezes mais tristes que “Tornei-me um ébrio”, sobre sua inocência. Na verdade, acredito que alguns dos condenados, como alguns daqueles detentos, se achem honestamente inocentes ou, no máximo, vítimas da conjunção maligna de circunstâncias adversas.

Mas imagino que, para consumo interno, eles e seus amigos e aliados estejam fazendo uma autocriticazinha, não é possível que não estejam. Devem estar examinando os inúmeros erros de avaliação e de estratégia em que incorreram, as posturas que se revelaram equivocadas, os momentos em que se deixaram tomar por voluntarismo ou soberba, as barbeiragens que cometeram. Mediram outros com sua própria régua e tomaram sustos, como o que lhes deram ministros do Supremo nomeados por eles. Continuo a achar óbvio que o que fizeram deu no que deu porque foi desastrado e mal concebido desde o começo, ou não teria resultado tão fragorosamente catastrófico. Realmente é chato inventariar erros, mas com certeza é o único jeito de ver os acontecimentos numa perspectiva desapaixonada e pelo menos aprender com eles.

Para consumo externo, a situação tem sido mais difícil. A tese de linchamento não cola, principalmente diante da aprovação generalizada da ação do Supremo. A atribuição de responsabilidade à mídia é uma besteira cediça, que lembra o tempo em que o imperialismo norte-americano era responsável até pelas secas. A mídia não está por trás, que eu saiba, dos escândalos do gabinete da Presidência em São Paulo ou da Advocacia-Geral da União. Se ninguém tivesse feito nada errado, não haveria mídia que conseguisse levar alguém a uma condenação criminal. E novos erros de avaliação, ou pelo menos sinais de descontrole, se evidenciam nas inoportunas menções às deficiências de nosso sistema penitenciário, que vão desde as afirmações do ministro da Justiça a um projeto de lei delirante sobre presos no Brasil. Para quem observa os fatos com o olho cínico que já se habituou à nossa realidade, essa inopinada preocupação é sinal de que, na hora em que os bacanas vão em cana dura, aparece logo alguém para amaciar.

A conclusão a que acabei chegando surpreendeu a mim mesmo, o mundo dá muitas voltas. No tribunal, eles foram condenados, mas, fora dele, está disponível uma explicação muito mais persuasiva que o chororô sobre as tais elites que ninguém sabe quais são, conspirações golpistas e demais besteiras, a saída consuetudinária. Acho que quem primeiro a invocou, embora não com esta designação, foi o ex-presidente Lula, quando alegou, mais de uma vez, que determinadas práticas — como, se não me engano, o caixa dois — são habituais no Brasil. Ou seja, uma maneira de dizer: “Sou, mas quem não é?”

Claro, o errado não se torna certo por ser prática de muitos, ou até de quase todos. Mas não apenas quem sai aos seus não degenera como, mais ainda, mesmo quem não é cristão há de ver sabedoria na observação segundo a qual, antes de criticarmos o cisco no olho do próximo, devemos cuidar da trave em nosso próprio olho. Não nos beneficiaremos nunca do julgamento que está sendo chamado de histórico, se acharmos que ele condenou gente diferente de nós, saída sabe-se lá de que buraco. Não é nada disso, são brasileiros como nós, aqui criados e educados, dentro da mesma História e da mesma cultura. O “sou, mas quem não é” pode ser cara de pau, mas não é descabido.

Vamos, naturalmente, excluir o gentil leitor e a encantadora leitora, bem como as senhoras suas mães. De resto, o nosso povo e, naturalmente, os políticos que dele emergem mantêm uma tradição de desdém pela lei, de jeitinhos, de tráfico de influência e pistolão, de assalto e desrespeito aos bens públicos, de clientelismo e de todas as outras iniquidades a que já nem prestamos muita atenção, de tão habituais. Mas não existe um “eles” à parte de nós, somos nós mesmos. Nosso comportamento é de plateia, mas somos atores. E não é em algum país remoto, é aqui no nosso.

Agora mesmo, somado ao vasto rol de falcatruas que vemos aumentar todo dia, descobriram uma quadrilha que vendia dados sigilosos. Ou seja, quem confiou no Estado — e quase nunca há escolha — e lhe forneceu seus dados, na verdade os pôs no mercado, onde, por seu turno, comprador também criminoso é o que não falta. E foi lançada a novidade do “kit concordata”, destinado a fraudar a lei em série, como numa linha de montagem. Lá se vai também a transposição das águas do Rio São Francisco, com as obras abandonadas e caindo aos pedaços, depois de anos de desperdício, incompetência e possivelmente ladroagem. E é assim em toda parte.

Os envolvidos em corrupção e crimes correlatos não foram os primeiros, são herdeiros de uma velha tradição nossa. Não são exceções inusitadas. Antes, são a regra, tanto entre antecessores quanto entre contemporâneos. O inusitado são as punições. Mas não achemos que, punindo-os como se o que fizeram não estivesse de acordo com nossos costumes, vamos finalmente viver sob o império da lei e da ética, sem ter mudado nossa relação frouxa com valores básicos, fingindo que não vemos nossa cumplicidade compreensiva e tolerante. Ponhamos a mão na consciência e reconheçamos a verdade. Não podemos atirar a primeira pedra, porque o pecado começa conosco.

Read Full Post »

Os réus fizeram foi uma lambança só, tão incompetente que deu no que deu.

Embora fique com vontade, não preciso relembrar aqui o papel marcante desempenhado por Itaparica, em toda a História do Brasil. Já falei sobre isso muitas vezes, mas a ingratidão de uns e outros volta e meia me faz querer repetir o extenso e glorioso inventário de nossa participação nos grandes eventos nacionais, desde a época da chegada de Cabral. Nem é preciso dizer que o julgamento do mensalão tem tido muita repercussão na cidade e concentrou as atenções no Bar de Espanha, só perdendo para o Vitória e o Bahia. Já se fazia tardar um breve relato dessa repercussão e, pedindo desculpas pela demora, me apresso a narrar o que me deram a conhecer.

Por uma questão de amizade e consideração, havia o consenso de não se tocar no assunto na presença de Zecamunista. Como se sabe, ele estava muito empolgado com seu Instituto de Corrupção Aplicada, destinado à formação de futurosos corruptos profissionais. Não apenas fez uma inesperada promessa a São Dimas, o padroeiro dos ladrões, como, no caso de absolvição dos réus, ofereceria 24 horas de pizzas de graça a quem aparecesse. Então, no momento em que seus sonhos aparentemente haviam caído por terra, não ficava bem mexer na ferida, é nessas horas que se conhecem os amigos.

Mas, como quase sempre acontece, o velho agitador surpreendeu a todos. Logo depois da afirmação do ministro da Justiça a respeito de sua preferência por morrer em lugar de entrar em cana no Brasil, ele entrou no bar muito sorridente, de boné novo, com foice e martelo de metal polido e o brasão de Stalingrado bordado na aba. Apertou a mão de cada um, dirigiu-se a Manolo e comunicou que pagaria uma ou duas rodadas de cerveja para os presentes.

— Se eu não fosse contra o ópio do povo — disse ele — afirmaria que se trata de um milagre. Atiramos no que vimos, matamos o que não vimos!

Ao contrário do que ele próprio tinha pensado, agora a necessidade de formação especializada para o corrupto estava mais evidente do que nunca. Como se viu, o que os réus fizeram foi uma lambança só, tão incompetente que deu no que deu. Eles ficam querendo botar a culpa nos outros, é natural, é muito chato ter de reconhecer que a culpa é da trapalhada que eles mesmos bolaram, armaram e executaram. Já conversara com uma socióloga amiga sua e encomendara um belo estudo de caso. Era uma moça moderna e, com perdão das senhoras presentes, o título será “Um estudo de caso: como assumiram o poder e aprontaram uma cagada federal”. Isso nunca aconteceria com um corrupto habilitado, mesmo que também fosse politicamente asnático. As condenações só vieram reforçar a necessidade da criação do Instituto, os pedidos de matrícula se multiplicaram, o futuro se afigurava melhor que nunca.

— Mas não é isso que eu chamo de milagre, meus caros senhores! — exclamou, pondo-se repentinamente de pé, a voz já fremindo, como em velhos comícios. — O que eu chamo de milagre é a oportunidade de ouro que se oferece, a chance histórica, mais uma vez, diante da Denodada Vila de Itaparica! Ninguém viu, ninguém percebeu, ninguém inferiu?

Não, não, ninguém vira nem percebera nada e alguns se acharam na contingência de confessar que não sabiam o que vinha a ser inferir. E não tinham ouvido o ministro dizer que preferia morrer a ir para a cadeia no Brasil? Tinham, tinham, mas isso não era novidade nenhuma. Tirante a cadeia do tempo do coronel Ubaldo, quando quase nunca tinha preso e, quando aparecia um, era uma festa, com o pessoal botando umas cadeiras no alpendre depois do almoço, para prosar, tomar fresca debaixo das mangueiras e se inteirar das novidades pelo preso, tirante esse tempo que não volta mais, cadeia é uma desgraça mesmo. Daí para inferir, contudo, a distância deve ser grande, porque ninguém estava inferindo nada.

Zeca sentou-se novamente e aos poucos conteve o arroubo. Claro, o ministro tinha razão, embora não houvesse deixado bem claro se tencionou recomendar pena de morte ou suicídio para os condenados. Como anfitrião, ficara envergonhado das acomodações disponíveis para os novos presos, é de fato um vexame e imaginem-se fotos deles na imprensa internacional, empilhados em alguma masmorra imunda, realmente seria muito ruim para a nossa imagem. Mas aí é que estava a grande sacada! Ele mesmo, Zecamunista, tivera o cuidado de visitar a cadeia de Itaparica. Não estava tão ruim, mas, mesmo que estivesse muito boa, o município precisava urgentemente investir numa cadeia nova. Alugar um belo casarão sombreado por árvores frondosas, botar umas grades artísticas, decorar com motivos do Recôncavo e aí — aí, meus amigos, oferecer a cadeia itaparicana para alojar os presos ilustres!

Sentiram? Sentiram o alcance? Ninguém ia poder reclamar das condições da cadeia e, ao mesmo tempo, ninguém ia poder dizer que não é cadeia. A ilha ia receber os presos de braços abertos e, principalmente, o grande movimento de visitantes, haja pousadas, restaurantes e lojas! Primeiro, os turistas turistas mesmo, até do estrangeiro. Segundo, a imprensa, os amigos dos presos, visitas íntimas, dia dos pais, dia das mães e por aí vai. E, terceiro, os correligionários! As caravanas solidárias, as manifestações de protesto em frente à cadeia! Itaparica no olho do mundo e faturando por todos os lados! Há que agir depressa, pois outras cidades podem roubar a ideia, todo mundo quer ter essa distinção, todo mundo vê o potencial mercadológico, qualquer cidade botaria faixas nas ruas para receber esse pessoal e dizer “a cadeia deles é aqui”.

— Mas a ilha não tem rival, nosso trunfo é esse, todo mundo que vem pra cá melhora — concluiu Zeca. — O objetivo da pena não é recuperar o meliante para o convívio social? Daqui eles vão sair regenerados.

Read Full Post »

Vocês também devem ter lido a respeito da utilização de celulares como forma de pagamento ou transferência de dinheiro. Já está chegando, ou vai chegar em breve. Quando eu era menino e lia tudo o que podia, achei lá em casa um livro velho, com ilustrações sombrias, sobre os males da fraqueza nervosa, que eu não sabia o que era, mas de boa coisa não se tratava, a julgar pela cara franzida e meio tresvariada estampada na capa. Impressionava também a visão de um velhote, sentado de pijama na beira da cama com o cabelo desgrenhado, aparentemente desperto de um pesadelo. A legenda explicava que, depois de uma certa idade, muitos indivíduos (e indivíduas, segundo a gramática da República) padecem de aflições noturnas, ansiedades, dispneias, disúrias, discinesias, dispepsias e inúmeras outras condições molestosas, que não raro induzem a fundos estados melancólicos e, por vezes, até mesmo ao passamento prematuro – os textos de antigamente eram caprichados.

Faz pouco tempo, eu não tinha queixa, mas acho que estão começando a pintar umas aflições noturnas, há indícios de que a fraqueza nervosa já se encontra em processo de instalação. Foi essa notícia do celular que me chamou a atenção para o problema. Não o celular em si. Não tenho celular e já me costumei a ser a atração turística da mesa e objeto de comentários sociofilosóficos. Não só não tenho, como não quero ter. Não por nada, somente porque é mais uma geringonça de que na verdade nunca precisei e da qual passarei a depender perdidamente, depois de alguns dias. Uma repórter encarregada de fazer entrevistas sobre comunicações resolveu me ouvir e, quando eu lhe disse que não tinha celular, recusou-se a acreditar. Durante alguns segundos, acho que ela ficou pensando que, na Bahia, celular tinha outro nome, o único que eu conhecia, só podia ser. E desligou meio desconfiada, sem se conformar.

O que me afetou foi o que li a respeito dos celulares e pagamentos, ou melhor, do que o futuro nos reserva, a nós, terceiridadistas (resignemo-nos a “terceira idade”, pois que não há mais jeito, e recebamos com um sorriso dúbio “atroz idade” e “indigna idade”, mas reajamos a bengaladas contra “melhor idade” e “feliz idade”). Na matéria que vi, várias especialistas se manifestavam sobre a novidade. Operação facílima para pagar qualquer conta, transferir qualquer quantia. Teclam-se alguns botões no celular e a transação está feita. A inovação é bem recebida por todos, de consumidores a comerciantes. Mas, como sempre, há aspectos não tão alvissareiros. As autoridades do setor manifestaram alguma reserva quanto à adoção talvez precipitada do mecanismo, pois sua segurança requeria certas cautelas e habilidades. Em mãos vulneráveis, podia facilmente ser explorado por hackers criminosos e outros espertalhões. “Nossa preocupação principal”, disse lá o entendido, “são os idosos e as pessoas de baixa instrução. Esses provavelmente precisarão de cuidados especiais ou atendimento diferenciado”.

Pronto, meu caro coevo, minha distinta coetânea. Estamos ingressando em nova categoria estatística e administrativa, talvez ainda não batizada, embora logo deva aparecer o eufemismo oficial adequado. Deficientes cognitivos diversos? Geroanalfabetos? Excluídos por critérios etarioeducacionais? Não sei, mas, com a falta do que fazer que parece grassar em alguns dos incontáveis órgãos que cada vez mais nos dizem como devemos nos comportar, não somente em público como em casa, em que devemos acreditar, do que devemos gostar, como devemos falar e até como devemos entender o que lemos, acho que precisamos estar preparados para receber mais proteção por parte do Estado. Talvez, se o idoso e o analfabeto quiserem usar o celular para transações financeiras, precisem, para seu próprio bem, tomar um curso especial para a categoria e, depois disso, mediante requerimento ao Ministério da Fazenda, obter a Carteira Nacional de Movimentação Financeira para Idosos e Analfabetos, que os habilitará à realização de pagamentos simples.

Tudo razão para aflições noturnas. Agora compreendo aquele livro profético e até gostaria de tê-lo aqui, para uma consulta. Ainda não me levantei sobressaltado no meio da noite, mas não é preciso, é fácil fazer previsões assombradas sobre o que está por vir. Os idosos, como adverte todo dia algum comentarista de entonações sinistras, cada vez aumentam em número e já começam a causar uma série de problemas. Deixá-los trabalhar mais tempo antes da aposentadoria não resolve, porque atravanca o mercado de trabalho para os jovens. Sustentá-los é uma carga cada vez maior para a previdência social. O sistema de saúde também sofre, sobrecarregado por uma demanda que não para de crescer. Não é impossível que se conclua que representam um custo impossível de pagar e o correto é morrerem pela pátria, como está nos hinos.

Além disso, surgem boatos alarmistas inquietantes. Zecamunista, ele mesmo também da confraria idosa, andou denunciando uma conspiração multinacional para matar a velharia, através de estratagemas diabólicos, como epidemias artificiais. E, o que é pior, tudo para abastecer de matéria-prima o mercado de comida de cachorro dos Estados Unidos, da Europa e do próprio Brasil. Não botei fé, embora tenha ficado meio cabreiro, pois nunca se sabe de nada, neste mundo de hoje. Mas ele acabou me tranquilizando.

– Esqueça aquilo que eu falei – disse ele. – Não vão mais armar o esquema da comida de cachorro.

– Ah, eu sabia que era invenção, não iam fazer isso com os velhos.

– Não é por causa dos velhos – disse ele. – É por causa dos cachorros. As sociedades protetoras de animais declararam que essa comida ia fazer mal aos cachorros e ameaçaram boicote. Mas aguardemos os acontecimentos.

Read Full Post »

Older Posts »