Feeds:
Posts
Comentários

Archive for the ‘João Ubaldo – 1998’ Category

Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário – evidentemente o condizente com a nossa condição provecta -, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).

O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português,  latim,  francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha de se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruibarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.

Havia provas escritas e orais.  A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.

— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra – dizia ele ao entanguido vestibulando.

— “Catilina, quanta paciência tens?” – retrucava o infeliz.

Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.

— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!

Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.

O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo “dar um show”. Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:

— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!

— As margens plácidas – respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.

— Por que não é indeterminado, “ouviram, etc.”?

— Porque o “as” de “as margens plácidas” não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. “Nem teme quem te adora a própria morte”: sujeito: “quem te adora.” Se pusermos na ordem direta…

— Chega! — berrou ele. — Dez!  Vá para a glória!  A Bahia será sempre a Bahia!

Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra “for” tanto podia ser do verbo “ser” quanto do verbo “ir”. Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.

— Esse “for” aí, que verbo é esse?

Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.

— Verbo for.

— Verbo o quê?

— Verbo for.

— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.

— Eu fonho, tu fões, ele fõe – recitou ele, impávido. – Nós fomos, vós fondes, eles fõem.

Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

Read Full Post »

Álcool ou droga? — perguntou a moça, com naturalidade.

— Álcool — respondi, também com naturalidade.

Sim, claro que o Prata me havia metido num filme de Fellini, melhor relaxar. O Prata me havia telefonado fazia uns dois ou três dias. Eu deveria seguir para São Paulo, onde ele mora, dormir na casa de Escritor (outro escritor de São Paulo que também faz o tratamento, mas cujo nome não vou mencionar, porque não consegui consultá-lo sobre o assunto) e, no dia seguinte, partir na companhia dele, Prata, para uma cidade do interior de São Paulo, onde se faz um tratamento para alcoolismo e drogas.

(mais…)

Read Full Post »

Demorou o atendimento. Não tanto quanto o de M., que esperou bem mais do que nós. Prata tinha medo de que ele se arrependesse e fugisse, me pediu colaboração na vigilância e tivemos que ficar bastante tempo, depois de sairmos de nosso atendimento. Mas M. estava plácido e calmíssimo, até porque fora esclarecido pelo colega do rabo-de-cavalo.

— Desculpe — chegou ele para M. — Desculpe eu perguntar. Se não quiser responder, não responda. Posso perguntar?

— Claro, pode perguntar.

(mais…)

Read Full Post »

— Olha, olha, uuulha!

— É, realmente. Bonita retaguarda.

— E tu não viu a vanguarda! Eu quis chamar tua atenção, quando ela vinha vindo, mas tu tava com a cara enfiada nesse bolinho de bacalhau. Aliás, depois da aposentadoria, parece que tua vida se resumiu a chope com bolinho de bacalhau.

— Não é bem assim, tem o carteado. Eu participo de uma roda de carteado na Antero de Quental.

(mais…)

Read Full Post »

Sim, senhoras e senhores, já fui o right wing forward Delegado. Delegado, segundo as palavras inesquecíveis de Hélio Gaguinho, por causa de meu eficaz (“implacável”, disse ele certa feita, mas ninguém lhe lembrava o fato, porque ele levou meia hora para dizer as palavras e não era propriamente uma pessoa de humor afável, notadamente quanto a seu problema de elocução) policiamento da grande área. Passei, muito modestamente, às notas de pé de página do futebol baiano, como Delegado, atuando inicialmente no Flamenguinho do Rio Vermelho e, posteriormente, já na condição provecta de right full back (beque direito, melhor dizendo, vamos ser honestos), no São Lourenço da gloriosa ilha de Itaparica.

(mais…)

Read Full Post »

— Eu sei que você sabe a minha idade, mas, olhando assim, como se você não me conhecesse, você diria que eu já tenho 60?

— Diria, diria. 60, 62…

— Não, tu tá querendo curtir com a minha cara. Tenha paciência, vê ali o Araújo, o Araújo é mais novo do que eu…

— Menos velho.

(mais…)

Read Full Post »

Acho que estou ficando masoquista. Quando publiquei aqui, faz muitas semanas, minhas objeções aos pombos urbanos, recebi cartas odientas de tudo quanto foi canto do Brasil, algumas, se bem me lembro, lamentando que, no nosso País, não se use a guilhotina ou a cadeira elétrica para canalhas como eu. E eu só falei algumas verdades (mentiras, mentiras!) conhecidas sobre pombos, a principal das quais é que defecam sobre as cidades que infestam, causando doenças e deterioração do patrimônio artístico exposto ao ar livre. Tudo bem, viva a democracia e a liberdade de convicção e opinião. Mas mandaria a prudência que eu não falasse mais sobre o assunto, pois um columbófilo (imagino que este seria o nome apropriado para o amante de pombos) pode exaltar-se em demasia e jogar um coquetel molotov aqui na portaria do edifício onde resido.

(mais…)

Read Full Post »

Older Posts »