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Archive for the ‘Ana Maria Badaró’ Category

Tem dias que eu gostaria de levantar-me, ir-me embora para minha casa, a algumas quadras daqui. Lavar-me dessa maresia pegajosa. Encontrar minha estante, minhas coisicas, meu elefante de pano, minhas manias de velho. Mas me condenaram a mim, em ferro e imagem, a ficar aqui, eternamente, sentado, pernas cruzadas, meio de banda, um livro no regaço, sem me perguntarem se tenho ardência nas juntas, se me dói a cervical, a cabeça. Sou um homem frágil e de bronze. Um homem de costas para o mar. Sozinho na América.

E a friagem? Mineiros adoram mar. Mas à noite, esse vento nas costas – eu não tenho pulmões de aço. No inverno, nem a bruma de Itabira me fazia tremer de tanto frio. De vez em quando, um homem do povo vem e me cobre com uma manta imunda e dorme encolhido ao meu lado. Diz coisas desconexas às vezes. Estaria bêbado de vida, entre a espuma de uma onda e outra? O mar de Copacabana quebra versos dispersos na areia e não me deixa adormecer de todo. Versos meus, versos que jamais escrevi, cantos, quem sabe, de sereias. Mas não posso rodar sob o meu eixo, se é que já tive algum, para ver se são elas mesmo. Há no ar um canto quase enlouquecedor, que me faz lembrar o tormento de Ulisses com essas criaturas raras. E me faz querer ir, caminhar entre os automóveis, olhar a cidade de outro ângulo, a praia. Como temi isso: ser condenado ao eterno. Por culpa de meus versos quebrados fiquei moderno.

Me espantam quantos flashes me cegam os olhos momentaneamente e quantas provas de carinho recebo ao ser mais um em tantas fotografias. Sentam-se em meu colo, me beijam, me babam, me olham com frieza, como convém a um desconhecido numa cidade grande. Alguns se emocionam. Reverenciam-me. Eu também choro com minha cara de estátua. Essa cidade-poesia gosta de versos brancos, de rimas, de prosa. Saibam, poetas, que crianças declamam diante de mim algumas de minhas estrofes. De cor. Fico envergonhado, sempre fiquei. Creditam a culpa da tagarelice literária aos pais, professores. Sorrio com minha cara de estátua. Nem gosto tanto de meus versos. Mas eles são minha cachaça. Sinto vergonha de me expor tanto. Mas agora é tarde.

Por esta calçada passam, acredite, bois solitários, passam moças bonitas, meninas e velhos calvos como eu. Uma paradinha e me olham. Tento retribuir, dizer palavra, como raramente fazia àqueles que me encontravam na Avenida Rio Branco atravessando o sinal apressadamente, calçada à calçada. Mas eles não percebem, porque meu rosto é máscara, que estou sorrindo, que hoje sou um pouco mais tolerante com este vasto mundo, que aprendi novas palavras e, penso, tornei outras mais belas.

Há vantagens em estar aqui. Pelo menos, não definharei mais do que já conseguira a vida. Em lugar da pele flácida, da boca caída e olhos opacos e mais míopes, um homem inteiro. Uma pasta dá um lustro e me tira um verde que se deposita nas dobras de roupas, limo nas rugas das mãos, como brotoejas em um recém-nascido.

Mas aqui, sentado, imóvel, vejo fogos espoucarem e o povo deslumbrado com um céu muticolorido, ano a ano. Disse que o último dia do ano não é o último dia da vida. Mas parece que alguns não percebem. E na impossibilidade de pular as sete ondas e fazer um pedido à rainha das águas, eu, um incrédulo, fiz uma promessa ao mar, esse mesmo onde estava escrita uma cidade. Só não posso contar, que desejos se guardam como segredos.

Outro ano começou e as chuvas de verão me castigam. Sabiam que tenho rinite? Não que eu despreze diariamente a idéia de me botarem plantado aqui, no banco, de costas para o mar. Mas, se pelo menos eu pudesse olhar os barcos, o infinito e as cores da aurora. No entanto, prescruto-os. Sei de outros amigos, estes sim talentosíssimos, que estão na mesma situação que eu, em outros cantos da cidade. Mas ninguém talvez em lugar tão privilegiado, a despeito de meus queixumes. Eu sou o homem sentado na calçada mais bonita do mundo. E nem aqui nasci. Sabia de fazendas e de montanhas. Reconheço a tamanha honra que esta cidade me deu. Poderiam amar o perdido mais que isso?

(Isso eu posso dizer.) Meu segredo vem, sim, do mar. E me foi sussurrado pelas sereias. Eu lembro que Bandeira as reviveu em um poema, “O Rei e suas filhas”. Mesmo que eu não me possa virar, sei que elas chegam ali por trás das pedras do Marimbás e me chamam com seus sons dóceis, ritmados pelo sopro da madrugada. E susurram; temos um plano, um plano, um plano. De costas demonstro minha esperança e elas se vão barulhentas.

Tenho de discernir se eu sonho ou se eu as ouço de verdade, ou se está nascendo em mim um poema com as sereias de Copacabana. Nessa orgia onírica a que me entrego, elas vêm se juntar aos elementais urbanos que falam comigo, estes a quem nada tenho a oferecer além de um ombro de ferro gelado e de um olhar fixo, mas de uma inabalável solidariedade.

O sol nascia no Leme e uma pequena multidão cercava o banco do poeta. Polícia, peritos, a TV, aposentados, prostitutas, curiosos falando com seus telefones que filmam. Licença que vossa família está chegando.

Um rapaz atlético e que corria no calçadão repetia. Vira o poeta de corpo de bronze se levantar, dar meia-volta, contemplar o infinito e descer até a areia onde, à beira-mar o esperavam as sereias. Ansiosas e rapidamente com sons inteligíveis submergiram no azul-marinho das ondas para além da arrebentação. No banco em frente ao mar do Posto Seis, a marca úmida na pedra da presença do poeta, libertado pelas iemanjás que – juram alguns – aparecem no mar de Copacabana.

A polícia não acredita em sereias.

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