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Archive for the ‘Heloisa Seixas’ Category

Leblon - Anos 60

A cidade sabia também ser acolhedora e mansa, envolvendo quem a amasse.

O Rio do meu tempo tinha cor e luz e cheiros, como em lugar algum.

Tinha manhãs de outono em que o sol vencia o ar fino e tocava a pele devagar, numa carícia. Tinha também tardes de primavera, em que floriam os espinheiros das praças, espalhando na atmosfera um cheiro de jasmim. Tinha buganvílias, flamboyants e amendoeiras. E coqueiros enfileirados junto à orla, cujas palmas delicadas, mexidas pela brisa, se recortavam diante do horizonte lilás, como num cenário de filme. O Rio do meu tempo tinha montanhas, cadeias e mais cadeias de montanhas esbatendo-se em degradê pela paisagem afora e ainda um pôr do sol que no verão deixava um rastro de cobre na areia molhada, transformando em silhuetas os retardatários das praias, que se deixavam ficar junto às ondas até a última réstia de luz. Ah, e tinha mar, um mar enorme no Rio do meu tempo.

O Rio do meu tempo tinha também sons, murmúrios, batuques. Choros e sambas em velhos casarões, burburinhos sem fim nas madrugadas sob os Arcos, risadas nas portas dos botequins, onde os embates sobre futebol tinham sabor de cerveja, de fritura e churrasquinho. O Rio do meu tempo tinha a nova Bossa, que era mais que Nova e reinava em templos com nome de maestro, de sons modernos ou finas misturas. Música, música, muita música – é o que tinha o Rio do meu tempo. Sem falar no carnaval, porque aí já é covardia. O Rio do meu tempo sabia ser espalhafatoso, quando fazia de sua ópera popular um milagre gigantesco, com dezenas de milhares de atores em ação. Ou ainda quando deixava escoar pelas ruas uns rios brancos, feitos não de água mas de gente, para saudar na praia o novo ano. Mas a cidade sabia também ser acolhedora e mansa, envolvendo quem a amasse em pequenos refúgios, em seus cafés, restaurantes, em suas livrarias. Eram coloridas e animadas as livrarias do Rio, e nelas nos deixávamos ficar por horas e horas, folheando os livros sem pressa, conversando nas mesas de seus cafés, encontrando amigos.

Ah, como era bom o Rio do meu tempo.

É claro que havia, também, problemas. Corrupção, drogas, violência. Muita violência. Mas ainda assim o Rio do meu tempo era maravilhoso. E nós não podíamos deixar que as notícias ruins tomassem todo o espaço, não podíamos deixar que o pânico crescesse e gerasse mais pânico, numa escalada sem fim. Sabíamos bem que éramos uma caixa de ressonância, tudo o que acontecia em nossa cidade repercutia mais. Precisávamos fazer alguma coisa, mostrar a nós mesmos nossos encantos, para nunca esquecê-los. Dizê-los em voz alta como a recitar um mantra, com o qual ganharíamos força para vencer o medo. Porque o pior de tudo era o medo. E porque era tempo – sempre seria – de salvar aquela cidade feita de beleza e pavor.

Era assim, no Rio do meu tempo – esse tempo chamado agora.

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Na Glória – Heloisa Seixas

Apesar de todo o charme, a decadência da região salta aos olhos

Outro dia, saindo de um sebo de livros na Rua do Catete, decidi ir caminhando até a Lapa, para almoçar em algum daqueles simpáticos restaurantes ao redor dos Arcos. Com essa decisão, tive a oportunidade de andar a pé pela Glória, coisa que nunca faço.

Depois de cruzar a Rua Bento Lisboa, segui pela calçada da esquerda e, logo depois de avistar o relógio da Glória, passei pela frente do prédio onde morou Pedro Nava – e em cuja porta, atravessado nos degraus da entrada, dormia profundamente um mendigo. Enquanto andava, observava à minha direita, para além da pista de carros, a beleza degradada da mureta que antigamente dava para o mar e pensava num Rio cheio de lampiões antigos, chafarizes e jardins parisienses. Mas logo sacudi aqueles pensamentos de passado, evocando um exemplo de Rio eterno e maravilhoso: a lembrança de que ali, sob a sombra das árvores seculares que formam uma cobertura filigranada, realiza-se nos fins de semana uma simpática feira onde um grupo toca chorinho entre legumes, verduras e flores. Nada mais carioca.

Segui em frente. Mas, apesar de todo o charme, a decadência da região ia me saltando aos olhos à medida que eu andava. Nas portarias dos prédios antigos, que na certa escondem aqueles lindos apartamentos de pé-direito alto e salões com arcadas, eu via o mármore já gasto, os apliques de bronze comidos pelo tempo, as fachadas repletas de pichações. É pena. Mas, ainda uma vez, procurei me concentrar na beleza – inegável – daquele bairro tão cheio de história e histórias.

Até que, a uma certa altura, naquela mesma calçada, passei diante de um chafariz antigo, completamente abandonado. Parei. Os tanques de pedra, secos, estavam cheios de lixo até a boca, a imundície chegando a tal ponto que era quase impossível divisar o chafariz em meio ao monturo. À frente das paredes de granito, imensamente gastas e imundas, camelôs vendiam bugigangas, balas e chicletes em duas carrocinhas improvisadas. Por trás do que restava do antigo chafariz, um pedaço de morro, com um resto de vegetação, era a lembrança pálida de um tempo em que certamente por ali descera um curso de água límpida, que se acumulava nos bojos dos tanques, onde era colhida pelas mucamas. Que o chafariz não mais servisse a tais propósitos, até porque felizmente já não há mucamas e a água nos chega agora pelas torneiras, é mais do que compreensível – é lógico. Mas que pelo menos se preservasse melhor aquele monumento de pedra, testemunha do passado num país que sabidamente não tem memória.

Dando de ombros, dei mais uns passos para me afastar dali, tentando outra vez me concentrar nas belezas do caminho – que no Rio, apesar de tudo, são sempre inúmeras –, quando na parede junto ao chafariz vi uma velha placa de bronze, tão negra de fuligem que mal se podia ler sua inscrição. Cheguei mais perto e não pude deixar de rir quando, apertando os olhos, consegui afinal constatar a suprema ironia do que ali estava escrito: “Patrimônio Histórico Nacional”.

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Burro-sem-rabo – Heloisa Seixas

Eu estava do outro lado da rua quando ele apareceu, virando a esquina. Andava sem aparentar muito esforço, empurrando por cima da calçada seu carrinho repleto de pedaços de madeira, papelões e caixas, numa pilha imensa, amarrada com capricho. Era forte e ágil, apesar da idade, e chamava a atenção pelo contraste entre a cabeça branca e a força que parecia ter nos braços. Era o que no Rio, desde os tempos antigos, se chama de burro-sem-rabo.

Sempre que vejo um deles passando na rua, paro e observo. Eles me fascinam. Há uma grandeza nesse trabalho bruto, na humildade desses homens que andam encurvados, puxando ou empurrando seus carrinhos, usando o corpo como instrumento de força.

Outro dia, folheando um livro com fotografias de Marc Ferrez, tiradas no século dezenove, parei numa página dupla, com uma imagem captada em 1899. Era uma foto da antiga Estação D. Pedro II, com sua esplanada de paralelepípedos, cheia de gente. A legenda dizia que ali, parados diante da estação, estavam exemplos de todos os tipos de transporte da época: o landau, a vitória, o carroção, o tílburi, o bonde puxado a burro, o carrinho de mão. Observei melhor a foto. O tal carrinho de mão era um burro-sem-rabo. O mesmo pranchão de madeira sobre uma estrutura de ferro, os mesmos puxadores, as duas rodas. Olhando-o assim, ninguém diria que, de todos aqueles meios de transporte, seria o único a continuar circulando depois que o relógio dos séculos virasse duas vezes.

Foi pensando nisso que continuei ali, do outro lado da rua, olhando o burro-sem-rabo que passava na calçada. De repente, ele parou. Parou com um tranco. A roda do carrinho parecia ter esbarrado em alguma coisa. Eu, que observava à distância, percebi que era um desnível da calçada, cujo cimento fora talvez deslocado por uma raiz. Mas o homem, com a visão toldada pela enorme pilha de papel e madeira, não conseguia ver o que se passava. Tentou e tentou, deu marcha-a-ré, forçou várias vezes – e nada. Comecei a ficar aflita. O carrinho estava empacado.

Só depois de muito esforço, ele conseguiu ir em frente – para meu alívio. Mas não tinha andado nem vinte metros quando parou de novo, dessa vez num trecho onde a calçada se alargava, sob uma árvore centenária. Cheguei a pensar que as rodas do carrinho estivessem novamente presas, mas logo vi que não. O homem remexeu no bolso e dele tirou um saco plástico. No mesmo instante, foi cercado por dezenas de rolinhas.

A cena me enterneceu. Ele jogava milho para elas. Talvez o fizesse sempre que passava por ali, porque as rolinhas pareciam conhecê-lo, cercando-o, quase vindo comer em sua mão. Quando o homem se pôs novamente em marcha, elas se alvoroçaram, como se pedindo mais.

E lá se foi o burro-sem-rabo, empurrando seu carrinho imenso, os passarinhos voejando em torno. Parecia o final de um filme de Carlitos.

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A noite vermelha – Heloisa Seixas

Praia do Pinto

Lembro-me que naquela noite acordei sem motivo algum. Acordei, simplesmente, sem saber por quê. No instante exato do acordar, não houve susto. O sobressalto veio depois. Olhei para a parede do meu quarto e vi que estava tomada por uma sombra incomum. Uma sombra vermelha, cor de fogo. Sempre achei que todas as sombras eram iguais, cinzentas, negras. Jamais imaginei que pudesse haver uma sombra cor de fogo. Intrigada, com uma ponta de medo, levantei da cama e fui até a janela. E então fui atraída pela luz.

Parece o início de um conto de terror – e, de certa forma, é. Foi assim que me senti naquela madrugada distante em que vi a Favela da Praia do Pinto pegar fogo. As chamas eram tão tremendas que projetavam sobre a parede do meu quarto um reflexo avermelhado, um pôr-do-sol no meio da noite. Todo o terreno hoje ocupado pela Selva de Pedra estava pegando fogo. Não havia um só ponto onde não brilhassem as labaredas, projetando-se para o alto, devorando o céu, em meio ao tiroteio dos bujões de gás que explodiam.

Ao ver a cena, meu coração se contraiu. Adolescente ainda, tive a noção exata do que significava aquele espetáculo terrível, pensando, angustiada, nas pessoas que com certeza tentavam escapar do fogo. Horas depois, quando o dia raiasse, outro espetáculo me espantaria. A multidão compacta enchendo as ruas em torno da favela destruída, carregando nas costas seus móveis, seus pertences, num movimento febril que era a perfeita reconstituição de um gigantesco formigueiro.

Ao fim de tudo, manhã já alta, quando olhei o imenso quadrado cinzento que restara no lugar da favela, senti uma estranha sensação de vazio. Mas ela veio acompanhada de uma lembrança boa. A recordação de outro espaço, grande como aquele, já então desaparecido: o terreno baldio onde armavam o circo, quando eu era criança. Ficava no quarteirão entre o Jardim de Alá e a Almirante Pereira Guimarães, em plena Ataulfo de Paiva, que eu atravessava de mãos dadas com a babá, rumo ao mundo encantado e assustador que a lona escondia. Por um segundo, cheguei a pensar no circo pousando outra vez no Leblon, no imenso terreno deixado vago pela favela calcinada. Mas logo dei de ombros, sorrindo. Bobagem. Eu não era mais criança.

Mas é engraçado. Desde então, essas duas lembranças tão díspares – do fogo e do circo – andam sempre juntas dentro de mim. Dois terrenos vazios que, como retalhos quadrados numa colcha, ajudam a compor o cenário desse Leblon de onde nunca saí.

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Um homem – Heloisa Seixas

Era um homem que amava as mulheres. Muitos homens gostam de mulher – creio que a maioria. Mas não estou falando de gostar. Estou falando de gostar muito, de amar, de adorar. De ser alucinado por elas, um verdadeiro admirador do ser feminino. Ele era assim. Amava as mulheres. Gostava de ouvi-las, de estar com elas.

Mas não era, em absoluto, um homem de alma feminina. Muito ao contrário. Era daqueles que têm um jeito viril, quase agreste, uma atitude máscula – mas não machista – diante de tudo.

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A revolta do mar – Heloisa Seixas

onda

As pedras na praia do Arpoador tinham desaparecido, mais uma vez. As areias também. E igualmente o sol. A paisagem não era mais aquela velha conhecida: já não havia a beleza do mar transparente, deixando entrever as pedras e sua verdura submarina, nem a espuma rosada quebrando mansa na praia. Agora, era só vento e frio – e fúria.

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Símbolo maior – Heloisa Seixas

Eu falava outro dia aqui sobre o Maracanã e eis que assisti, num daqueles documentários que antecederam a Copa, a uma reportagem sobre o estádio de Berlim. O mesmo estádio construído por Hitler para as Olimpíadas de 1936 e que agora, todo reformado, recebe uma série de jogos (tendo começado pela estréia do Brasil), até a grande final, em 9 de julho. E fiquei pensando: eles tinham tudo para querer botar abaixo aquele estádio. Derrubar e fazer outro – por que não? Seria talvez até mais barato. Os ingleses fizeram isso com Wembley, o que, devo confessar, me doeu muito. Pois os alemães teriam motivos de sobra para fazer o mesmo, apagando, de uma só tacada, o estádio ultrapassado e o passado terrível que está impregnado em cada pedra e cada fresta do lugar.

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