Feeds:
Posts
Comentários

Archive for the ‘Rosane Santiago’ Category

Eu sou o samba – Rosane Santiago

Quem escreve tem que , antes de tudo, saber dividir. O texto retrata, ilustra, mostra, oferece. Um pouco de mim está aqui. E o que sou neste dia? Eu sou o samba, e sou natural aqui do Rio de Janeiro. Mas me reporto aos tempos em que vivi esta carioquice em São Paulo, quando encontrei, ou fui encontrada, por um senhor idoso e menino, moleque que dizia ter no nome qualidades que nunca teve na alma, dizia que era quietinho, Zé Quietinho, Zé Ketti.

Conheci-o em uma tarde fria da paulicéia, pelo menos é assim que me lembro,li letras e ouvi composições inéditas, que acredito nunca mais alguém terá a oportunidade de ouvir, pois Zé, como grande parte dos gênios, estava mais preocupado em criar do que em cuidar da cria. Gestava, no pecado sagrado da criação, filhos que paridos davam lugar a outras canções.

Comecei o texto falando de mim, ou melhor, do Zé, para ser mais exata – do samba. E para continuar tenho que me lembrar das conversas prazerosas, onde o Zé Kettinho, de quem eu fui realmente amiga, se exibia num passado ilustre contando a história do Rio de Janeiro através da vida no Zicartola, na descrição hipotética do sabor da comida de Dona Zica, nos tempos em que a Portela era a vida, na experiência cultural e política de outros tempos, no Café Nice onde Francisco Alves lhe falou, nas mulheres, nas Dinas, nas traições, enfim, num estilo de vida poético, onde cada acorde, cada nota, cada melodia, era talento e samba.

Zé vivia cercado de fantasmas, sabia disso, mas mesmo assim era muito medroso. Lembro-me de ter colocado uma mensagem em minha secretária eletrônica, onde antes de entrar a minha voz, entrava uma música “Diz que eu fui por aí”, que é uma composição do próprio Zé Ketti, cantada por Nara Leão. No final do dia, ao ouvir as mensagens me assustei, haviam alguns minutos da fala desconcertada do Zé, que concluíra que Nara havia vindo do além para cantar para ele. E ficou registrado na fita algo assim: “Ai meu Deus, a Nara no telefone. Ai meu Deus ela veio falar comigo”. Coitado, acho que ficou confuso, algo entre o decepcionado e aliviado quando lhe expliquei o que ocorrera, o que era aquela “alma” a lhe cantar.

Lembro-me do desentendimento, da mágoa, de mim triste, do samba, da ausência do seu som. Zé era quietinho, mas não pensava antes de arranjar problemas com alguns. Desta feita eu havia sido a escolhida. Mais tarde, seu antigo parceiro, Elton Medeiros me disse que já devia ser a doença a lhe atrapalhar os pensamentos. Acho que era. Devia ser. Mas o tempo passou e a mágoa cristalizou. Ouvi algumas canções que o Zé Renato gravou; fiquei sabendo de sua volta ao Rio, quase ao mesmo tempo em que eu voltava; ouvi falarem da doença; da morte. Não chorei. Não senti. Zé não gostava mais do corpo onde habitava seu espírito menino, era consciente da decadência, acreditava que a medicina poderia ajudá-lo, mas tinha o peso da idade nas costas, na sabedoria crítica, no cansaço, no esquecimento.

A volta para o Rio de Janeiro, para a família, deve ter lhe sido benéfica, apesar de ser um eterno inconformado com a ditadura familiar, de pais ou filhos. Mas será que ele trouxe consigo as composições que me mostrava? Vi e ouvi mais de trinta, geniais, maravilhosas. Onde estão estes escritos? O Zé Kettinho, que era o samba, não sabia ler música, chamava alguém que soubesse para lhe servir e tocar e cantarolava o que queria, o que o obsidiava a cabeça, a música, o samba.

Lembro-me de uma tarde, Zé sem camisa na quitinete calorenta, detalhes vermelhos na decoração, ventilador ligado, um amigo violonista exausto e eu, não menos cansada, adentrava ao recinto movida pelas chantagens veladas do “véio”. Chegava àquela ruela, próxima à rua da Consolação, para ouvir algo urgente – uma música, um samba do Zé Ketti. Onde estão estas músicas? Eram muitas, será que voaram como as gaivotas a fugir das sereias? Você entendeu a colocação, não é Zé? Então tudo bem.

Espero que agora, neste rosto seu, um sorriso tenha aparecido, como naquele show em que presenciei a sua felicidade em cantar em público depois de tanto tempo. Não me lembro o nome do bar, acho que era Boca da Noite, sei que era no bairro do Bexiga. Cartola, naquela noite, foi interpretado de maneira perfeita, além disso alguns textos meus ilustraram aquele show. Muitas coisas boas aconteceram e delas há muito eu havia esquecido. Houve aquela reunião que você inventou para me oferecer um almoço, tomando cuidado para que meu namorado não se incomodasse, você tinha medo que ele sentisse ciúme. Só percebi que a festa era pra mim quando ao saber que eu não comia camarão você ficou tremendamente decepcionado. Lembro-me que comi camarão, lembro-me do estranhismo que me causou vê-lo comer as cabeças dos bichinhos, regadas a uma quantidade absurda de aginomoto, não lhe era permitido ingerir sal então “entrava” nos temperos “alternativos”. Sei que era mais que sua amiga, era a lembrança do sotaque carioca, a ingenuidade dos vinte anos, a felicidade que nada cobra, a moça que sabia escrever, que podia sentir, que deixava os olhos ficarem marejados diante de um poema ou de uma bela canção e que, principalmente, gostava de você.

Um dia, num cinema, consegui chorar sua morte. O tempo estava a quarenta graus, mas o filme não era do seu compadre Nelson Pereira, era Buena Vista Social Club, do Win Wenders. E eu lhe vi, como no bar do bexiga, na imagem de um outro músico negro, alquebrado pelo passar dos tempos, possuído pela música, encantado pela vida, só aí chorei, soluçava como se houvesse lhe reencontrado no mundo mágico da sala escura que me é tão importante como lhe é a música. Saí aliviada, me livrei da tristeza. Estranho, nunca consegui escrever sobre isso, e minha proposta inicial era de escrever sobre o samba, então, não mais que de repente, surge você, o samba.

Fico por aqui, no carnaval, na cidade maravilhosa, e na saudade de você, que ainda leva a alegria para milhões de corações brasileiros.

Read Full Post »

À porta de uma quadra de escola de samba. O ensaio não começou, mas a animação das pessoas contagia quem passa pela rua. O repique de alguns tamborins faz música de fundo para a chegada dos passistas, das senhoras da ala das baianas, dos jovens lindos de dorso nu, das mulheres com as pernas e barrigas expostas em minúsculos shorts sensuais a lhe valorizarem as nádegas, ambulantes vendendo churraquinhos e queijo coalho, clima de quermesse. Uma figura me chama a atenção, uma mulher de uns trinta anos de idade, roupa discreta, cabelos compridos, uma echarpe azul. Ela distoa das pessoas ali, fica parada a observar o ambiente, assim como eu, mas parece estar sendo engolida por um mundo mágico, alucinante. Ouvem-se mais instrumentos sendo incorporados aos tamborins, e as pernas da jovem, cobertas pelo tecido grosso da calça comprida azul, começam a se movimentar. Acho interessante vê-la absorver sutilmente a energia dionisíaca do samba. Distraio-me, olho para o lado, e volto a observar a moça. Ela desaparecera e minha vista sente falta daquele toque azul na noite que apenas começa.

Entro no recinto e imediatamente, lógico que é coincidência, toda a bateria começa a tocar. Parece uma trilha sonora composta exclusivamente para mim, para minha entrada que a partir dali passa a ser majestosa. O samba tem disso, faz de simples plebeus, deuses, reis e Cinderelas. Com o trovão da orquestra de batuques, me reporto há séculos atrás, sinto como se estivesse numa festa Lundu, vendo os corpos se sacudirem quase que coletivamente. Ao lado, um grupo de mulheres passistas parecem possuídas, valorizadas pelas roupas que lhes desenham os corpos dicavalcantemente, fazendo com que pernas fortes, sustentem a dança das carnes trêmulas e fartas.

Tinha me esquecido como é forte em mim a energia do samba. Hoje, nesta quadra do subúrbio, a maioria dos freqüentadores pertencem à comunidade local, talvez a mulher de azul, que reencontro novamente, não seja daqui, eu e mais uns três também, mas a grande maioria vive a intensidade da alegria durante todos os dias do ano. Volto a admirar a moça azulada, que agora mexe as pernas agitadamente, enquanto sacode o dorso e movimenta os olhos pelo salão a procura de algo. Pára. Acha. Seus olhos correm embevecidos o corpo de um rapaz. Senta-se. Parece que encontrou o espetáculo. Num primeiro momento ele não a vê, ou finge não enxergá-la, numa escuridão narcisista de admirar a si mesmo em passos de dança perfeitos. Eu ainda não havia reparado naquele homem, mas desde que ela o olhou ele acendeu, parecia se exibir somente para ela, sabia daquele olhar feminino nele, passos precisos, fábrica de orvalho no dorso nu, Deus de Ébano quebrando os ossos, para reconstruir-se com a malemolência que só a herança genética pode explicar.

Pouco depois canso-me de olhar Eurídice e Orfeu e sigo um outro par, figuras mitológicas também, ele -Mestre Sala e ela- Porta Bandeira. Este casal contradiz meus pensamentos anteriores, o que eu escrevi a respeito da herança genética, ela de uma elegância sem par – é negra, mas, pasmem, ele é oriental. É um pássaro suntuoso a planar acima do chão de cimento corrido, alguém que vive o carnaval diariamente, passa seis meses no Brasil, onde defende uma escola belíssima, de muito prestígio, e o restante do ano no Japão, onde representa com sua alma brasileira nosso povo, nosso passo, nosso samba.

Passam por mim, Marias, Vilmas, Célias, enfim, Cecílias e Joanas, cariocas/baianas, mulheres que de roupas comuns giram seus corpos como se vestissem saias brilhantes e rodadas. A ala das baianas sempre foi a que mais me emocionou na Avenida, mas vê-las sem as fantasias, observar-lhes de perto os rostos felizes e cansados, as vestimentas humildes, algumas bocas murchas pela falta de dentes, outras porcelanamente sorridentes, os saltos plataforma, os chinelos havaiana, ou as rasteiras sandálias brancas, rangendo, fazendo uma percurssão possivelmente observada somente pelos ouvintes sensíveis, e que me leva à Bahia, ao Recôncavo, a Cachoeira, onde as descendentes de escravos, cumprem a promessa das avós e devotamente homenageiam Nossa Senhora da Boa Morte. Sagrados movimentos, lá e cá, cheios de volúpia e santidade, sincretismo, exposição da ausência de culpa do candomblé em rodopios sincronizadamente abençoados por Nossa Senhora.

Avós de algumas sambistas mirins, estas mulheres bebem suas cervejas e refrigerantes descansando do desfile que fizeram , e assistem a uma apresentação individual dos passistas, alguns deles seus filhos e netos. É realmente uma festa familiar, como um grande aniversário que acontece a cada semana. Chega a hora de ir embora, prometo a algumas pessoas voltar para o próximo ensaio, na saída vejo a moça de azul beijar o deus negro. Cena linda…

Sábado. 22 horas. O número de carros do lado de fora mostra-me que o público hoje deve ser diferente. Volto à quadra com outro espírito, o de observar a mim antes de tudo. Sinto-me graciosíssima em meu vestido preto, rodado. A exposição dos ombros e das pernas, hoje alongadas pelas plataformas que são meus saltos, altos e imponentes, a levantar meus passos tímidos, mas que ritmados fazem de mim uma sambista. Começo a dançar, mexo os pés, as pernas e sinto minhas ancas se rebelarem como se estivessem fogosamente preparadas para um ato sexual com a música, com o ar, como se florescesse uma orquídea dentro de mim.

Há uma amiga comigo, ela verdadeiramente sabe sambar, agita-se perfeitamente e tem a paciência de me ensinar alguns movimentos, tenho nela um reflexo do que sinto. Sei exatamente como estou aos olhos alheios pelo que vejo de sensualidade e prazer nos olhos de minha amiga, que também não pertence ao mundo do samba, mas aprendeu eximiamente a dançar vendo sambistas na televisão. Acho que pertencemos a um grupo grandioso que tem a coreografia do batuque na alma. Reparo uma outra moça, menina ainda, e encantada tento imitar-lhe os movimentos. Me assusto! Ela vem rebolativa e generosa, passando-me um pouco de sua graça e movimentando-se numa velocidade surpreendente. Me sentia como uma bailarina iniciante a dançar com Barichnikov. Quase lhe pedi um autógrafo. Que ballet! Que consciência do próprio corpo! Ela faz uma reverência, sinto-me numa corte da idade média, então ela sai. Sai de mim dançando pela lateral e se junta a outra pessoa, um homem que dança tão bem quanto ela , mas que se atrapalha, diante daquela presença, tanto quanto eu. E assim ela vai, Afrodite menina do samba a presentear, com sua imagem divina, simples mortais. Sei que na passarela do samba ela não vai ser rainha da bateria, essa deve ser alguma modelo e atriz, não vai ser tão filmada e fotografada quanto a outra, menos bonita e talentosa que ela, mas mais ambiciosa. Ela vai passar majestosamente, arrancando suspiros e sorrisos, personificando e dignificando o carioca em sua essência, o brasileiro em sua mulata e bela aparência.

É tarde. A madrugada vai alta. Meu vestido há tempos colou no corpo, minhas pernas lavadas de suor, se retesam para suportar os pés firmes dentro das sandálias molhadas. Penso em como estará minha aparência, mas ao observar o olhar encantado dos homens que passam, sei que posso me considerar uma representação fugaz de Iemanjá, pois sinto um brilho negro de Orixá em mim.

Engraçado, agora, enquanto escrevo, sinto o sangue fluir para minhas pernas, como se as imagens e sensações que recordo fizessem meu corpo se preparar para a dança. Aliás, no meu meio social é praticamente incompreensível, eu percorrer a grande distância até o subúrbio, as altas horas da noite, para ouvir samba e dançar com gente desconhecida, como se eles fossem irmãos. É como se eu fosse, em outros tempos, uma sinhazinha aventureira a fugir na calada da noite para dançar Lundu e Batuque e celebrar a vida com meus iguais de espírito. Foi o que Chiquinha Gonzaga fez, ela era samba, era Brasil.

Os críticos nunca poderão reconhecer a razão disto, a menos que dancem despudoradamente com algum gênio das pernas, daqueles que encantam reis, marajás e platéias das mais distintas em todos os cantos do mundo. Estes mesmos que também, humildemente, têm prazer em dançar com um iniciante no samba, que o olha nos olhos, observa a modificação do outro corpo, se mostra e recolhe sua presença para o parceiro aparecer, sorri no sorriso do companheiro, sem críticas, sendo só qualificação e deleite. É isso! É a festa da carne, é carnaval, é prazer!

Rosane Santiago Cordeiro é escritora, produtora e roteirista de cinema. Um de seus trabalhos, o documentário “Rio de Janeiro Sagrado” consumiu dois anos de pesquisa e gravações e mostra que a cultura popular fluminense existe, é rica e deve ser considerada referência cultural para o Brasil. Rosane Santiago Cordeiro foi diretora, roteirista e produtora da obra.

Read Full Post »

b43bflor104

O Rio de Janeiro está cinza. Um friozinho paulista invade minha alma, trazendo-me a recordação do tempo em que eu morava em outro sonho feliz de cidade e morria de saudade desta tão maravilhosa. Lembro-me que uma vez, quando a saudade daqui me corroía, fui a um bar, que tinha como publicidade ser uma cópia dos botecos do Rio de Janeiro, uma idéia bem original. Fui meio a contragosto e, é óbvio, fiquei reparando o que o lugar poderia ter de parecido com os botecos do Rio. De repente meu acompanhante de copo me cutucou:

– Olha quem está aí ao lado.

Perdi o ar. Tarde cinzenta e fria, um boteco parecido com os da minha cidade e Martinho da Vila senta-se à mesa ao lado. Foi o grande click! Concluí que poderia ter “aquilo tudo” todos os dias e, em pouco tempo, voltei a morar na cidade maravilhosa. Gosto dos bares de São Paulo, apesar de os achar demasiadamente caros. No bairro do Brooklin há um boteco muito interessante, que só tem cerveja, pinga e, aos sábados, o Português faz um churrasquinho dos melhores, que as más línguas dizem ser churrasco de gato.

Pensa que em Sampa existe só boteco “Fashion”? Não meu irmão, a paulicéia é desvairada sim. Enfim, os botequineiros profissionais localizam botecos de qualidade em qualquer cidade deste país.

Entra da janela o Rio de Janeiro frio; dá vontade de ficar deitada debaixo do cobertor, assistindo ao Globo Esporte e vendo a alegria da minha querida amiga Glenda. Ai, que bom! Mas um barulho vem da rua, a gargalhada de um homem, uma buzina e o outro:

– Passa lá, tô indo pro Jobi.

Um comichão me faz lembrar que estou no Rio de Janeiro e que já passa das dez, sinal de que os amigos cobotecanos, como diz o João Ubaldo Ribeiro, já se localizam em suas cadeiras, nada acadêmicas, mas numeradas pelo hábito. Deitada em minha cama ajeito o cobertor, dou um sorriso e decido me desvencilhar do calor das cobertas e me aventurar a ir ao encontro de uma belíssima caipirinha de lima, que os mais aristocratas fazem questão de chamar de Caipirinha de Lima da Pérsia, como se a localização geográfica e internacional dessem a essa bebida maravilhosa alguma qualificação a mais. Como se pudesse!

Um banho, um perfuminho, um batom, quem sabe encontro o Príncipe Encantado no boteco? O café, pois ninguém é de ferro e só ele para me acordar de verdade, e… rua p’ra que te quero. É Domingo, dia sagrado, e da calçada encaro o Cristo, escondido atrás das nuvens, mas completamente visível para os que sabem da existência dele ali. Faço uma reverência e sigo pelo “circuito das águas”, como os bêbados inveterados chamam as ruas do Leblon. Entro na Dias Ferreira, passo pelo Azeitona, onde uns quinze homens, todos “coroas”, se reúnem numa felicidade sem par, brincando entre si e dizendo impropérios e delicadezas às mulheres que passam. Mais à frente, o Tio Sam, onde um homem solitário espera a chegada do amigo fiel que, por enquanto, deve estar em outro bar. Talvez não seja tão solitário; ele tem a companhia dos pensamentos, um copo de chope e a visibilidade que sua vida comum nunca lhe daria, pois qualquer um que passe é visto e quase necessariamente se vira e o vê. O barulho alegre do boteco traz a atenção para dentro deste e conseqüentemente para o homem que traz na alma a recusa de ser feliz, obtendo vislumbres de alegria nos finais de semana botequineiros do Leblon.

Mas deixa de falar dos outros, hábito pouco digno, mas existente também e, até, nos botecos cariocas. Aliás quanto mais homens numa mesa mais se fala da vida de outrem. É páreo duro com salão de cabeleireiros! E eles nem vão reclamar desta observação; vão esboçar um sorriso e recordar o último comentário que fizeram. Bar funciona como terapia de grupo; todos aprendem com as experiências alheias.

Continuo a andar, passo por um restaurante de massas, levo um susto com um cachorrinho que está sempre na janela de uma casa, mas que sempre me surpreende, cumprimento o rapaz da farmácia e chego ao meu boteco/restaurante, o Flor do Leblon.

windowslivewriterumdiafrioalgumlugarsimpleseporissomelhor-b43brosane-thumb

A recepção é divina e comum: Ela chegou! Vamos mudar de assunto que ela chegou! Debochado e divertido, esse pessoal, que parece uma família. “Arnaúdo”, o ex-executivo de mercado financeiro, agora aposentado e fazedor de arte pela Internet, sua maravilhosa esposa Célia o casal cantora/ginecologista, Regina e Luiz Jorge; a Frida, nossa judia de plantão e facilitadora dos meus negócios com os chineses ambulantes, que vivem me empurrando bugigangas, que só duram um dia; enfim gente que me aquece a alma. Mas tem ainda muito mais, temos o Miltinho e a Jane; o Paulo Cachoeira; o Pirão; o Clayton e Sérgio; o Marcus Vinícius, este que é nosso médico full time, que vive a socorrer amigos e desconhecidos nos bares do bairro; além de muitos outros companheiros.

Falando em médicos, se juntássemos todos os médicos do boteco, poderíamos fazer um bloco de carnaval, os Anestesistas do Copo ou os Ginecologistas da Cachaça.

Começo a conversar sobre a Bahia com meu escritor baiano preferido, que diante da minha incredulidade ameaça e prova que sabe cantar músicas de capoeira vindas diretamente do recôncavo para as esquinas do Leblon. E não é que o homem é mandingueiro? As pessoas passam encolhidas pelo frio e olham sorridentes aquele tenor baiano, com a animação de um menino, se exibindo para uma mesa alegre que o ouve enquanto conta piadas ou reclama do rissole de camarão. Aliás, este cardápio “engordante” de boteco chega à beira do surrealismo. Quem pensa em um único dia comer um feijão com torresmo, pastel de carne, espetinho de frango e levar espaguete com frutos do mar para degustar em casa? Já vi isso. Juro! E quem freqüenta boteco, qualquer um, também viu, disso para mais.

É então que vejo chegar à mesa um dos nossos engraxates de plantão, que já virou amigo de alguns e afilhado de outros. Fico reparando na face bonita do menino e, num plano seqüência, me assusto com a gargalhada expressiva do médico Gemmal brincando com o garçom, nosso querido e rabugento Antônio, que é o único que me serve sem perguntar como quero o guaraná, “sempre com laranja e sem gelo”. Esta é mais uma característica dos botecos: você se acostuma a tal ponto com o serviço de um garçom que se ele for trocado é um problema aceitar outro.

No nosso “Flor” contamos com algumas comodidades, além da farmácia Edith, grudada ao boteco e reduto dos hipocondríacos de plantão. Em frente situa-se a banca de jornal do Carlinhos que, reparo, ameaça fechar. Apresso-me em sair da mesa e comprar o jornal . Da banca, de um novo ângulo, observo aqueles homens e mulheres felizes, apesar das vidas tão cheias de confusões, doenças muito sérias, problemas com a família ou financeiros, inabilidade em relacionamentos, enfim, situações por que todos passam ou um dia virão a passar, freqüentadores de botecos ou não. Fixo o foco do olhar no sorriso baiano de um, na força de vontade de viver de outro, na delicadeza e na beleza de alguém, na simplicidade ao se brindar à saúde de todos. De longe, minha vista fica marejada de lágrimas e pela minha cabeça passa uma frase que poderia ser filosofia de boteco, mas é de Charles Chaplin: ” A maneira mais simples de se abordar um assunto é sempre a melhor”.

“Lembranças de uma época em que eu era feliz e sabia. Paulo Afonso”

Read Full Post »