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Archive for the ‘João Ubaldo – 2011’ Category

Uma vez falei aqui contra a chamada lei da palmada e fiquei com medo de sofrer uma tentativa de linchamento. Falei contra a lei e não a favor da palmada, mas fui amplamente descrito como um primitivo nordestino, defensor da tortura de criancinhas. Então acho que devo esclarecer que apanhei bastante em pequeno e até admito que o muito que há de torto em minha cabeça possa ser ligado a essas tundas, que iam bastante além de palmadas, em detalhes que não me dá gosto lembrar. No meu currículo, arrolam-se chinelos, tamancos, cabos de escovas, palmatórias (não só em casa, mas também na escola da professora Madalena, em Itaparica), cinturões de todos os materiais, beliscões, puxavantes de orelha, um ocasional cachação e aparentados.

Contudo, embora tenha as naturais queixas, pois que apanhar nunca me pareceu boa coisa, não desejei vingar-me disso nem com os autores das surras, nem com seus descendentes através de mim. Continuei a me dar bem com meus pais até o fim da vida deles e jamais bati em meus filhos, nem sequer com palmadinhas. Aliás, minto. Uma vez, em Salvador, minha filha mais velha, então com uns 5 anos, aprontou tanto e tão incontrolavelmente, que eu também me descontrolei e dei um palmadaço nela. Primeiro e único, porque, assim que vi sua carinha subitamente aterrorizada pela surpresa violenta, me senti um espécie de monstro. Exagero, claro, mas continuo pessoalmente contra não só palmadas como qualquer castigo físico.

Além disso, agora compreendo que devo manifestar-me a favor da lei da palmada. Em primeiro lugar, somos um país que protege muito. Não há ninguém que não esteja protegido – jovens, idosos, mulheres, homossexuais, consumidores, corruptos com direito a foro especial e quem mais nos ocorrer. O menor de idade mesmo é protegido por todos os lados. Creio que é exemplar o caso de um menor que faça 18 anos no dia 10 e, durante um assalto no dia 9, mate o assaltado somente pelo prazer de experimentar o revólver novo. Já vi casos assim, ou piores, em reportagens de televisão. Como somos um país rigoroso quanto à aplicação da lei, o delegado, embora privadamente tenha convicção oposta, é, assim como o juiz, obrigado a fazer valer a norma. Dura lex, sed lex. Portanto, matar com 17 anos e 364 dias é, por assim dizer, permitido, não dá nada. Já matar aos 18 anos pode dar cana séria, ainda que raramente. É talvez oportuno lembrar o episódio havido em Brasília e noticiado nos jornais, em que um homem assassinou a namorada e, no dia seguinte, foi à delegacia, levando a arma e o cadáver, e confessou o crime. Deu lá seu depoimento e foi solto na hora. Eu não conto essas maravilhas a meus amigos estrangeiros porque eles não acreditam, nós somos um país abençoado demais.

Mas desculpem, saí do assunto. O assunto é a lei da palmada. Devo reconhecer que nunca vi o texto do projeto e só sei dele o que ouço e leio aqui e ali. Em meu favor, porém, posso alegar que, como praticamente todos nós, não sou bem cidadão, mas súdito. Esse negócio de dar penada em nossa própria vida não é para nós. Como ensina a história da lei de ficha limpa, o que nós queremos não tem nada a ver com o que fazem do País, a gente não tem nada que se meter. Eles resolvem as coisas e nós vamos sabendo aos poucos, isso quando interessa que a gente saiba, para poder fazer o que eles mandam.

Eu ia dizendo que parece ser meu dever manifestar-me a favor da lei da palmada, que estende a proteção estatal sobre uma categoria desamparada. Antigamente, as crianças podiam ser surradas, afogadas, esfoladas ou fritas, não havia lei que as protegesse. Agora, sim, agora haverá, com certeza também através de novos órgãos oficiais, novos especialistas, funcionários, verbas e assim por diante – os legisladores não esquecem essa prioridade nacional, a criação de postos de trabalho. E a rede não se limita ao Estado. Entram nela, por exemplo, sogras e vizinhos. Calculem quantas sogras, por esse Brasil afora, fiscalizarão as mulheres de seus queridos filhos, essas desmazeladas sem educação doméstica. Não haverá palmada que não seja denunciada à polícia e prevejo que esse mar de proteção poderá espraiar-se de tal forma que teremos delegacias das palmadas e um Disque Palmada 24 horas por dia.

Tenho um pouco de preocupação, é bem verdade, com a obediência à lei, notadamente por pais e mães recalcitrantes ou de outras culturas. Fico pensando na possibilidade de certas situações. Imagino que, denunciada por ter dado meia dúzia de palmadas no Ranulfinho, a mãe do Ranulfinho deva receber a visita de um psicólogo oficial, que tentará demonstrar-lhe a inadequação e inaceitabilidade científica e legal do castigo físico. Ao que a mãe do Ranulfinho, que sempre foi da pá virada e ostenta cabelinhos na venta, diz que o psicólogo é psicólogo lá pras negas dele e que o sacaneta do Ranulfinho vai apanhar toda vez que tornar a abrir a geladeira, morder um pedaço de tudo o que tem lá dentro, deixar a porta aberta e emporcalhar a cozinha toda. Como de fato, dias depois há nova denúncia e novamente a mãe do Ranulfinho manda o governo pastar. Para encurtar a história, virá depois do psicólogo um psiquiatra, a mãe do Ranulfinho dirá que o psiquiatra se meta com a mãe dele e reincidirá, não restando recurso, senão cadeia mesmo. E, já que o pai do Ranulfinho apoia sua mulher, far-se-á a retirada da guarda do Ranulfinho e seus três irmãozinhos. Naturalmente que serão separados, porque ninguém poderá ficar com a guarda dos quatro. E, se não houver parentes ou amigos dispostos, o Estado tomará a si a guarda deles e, enquanto os pais mofam na justa cadeia, eles serão criados na mesma instituição modelar em que foi várias vezes confinado o menor que matou dois e feriu quatro, para experimentar o revólver. O Brasil se aperfeiçoa cada vez mais, o Ranulfinho é um menino de sorte.

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Acho que, como eu, pelo menos alguns de vocês às vezes resolvem, embora saibam que não dará certo, não ler mais jornais, nem querer saber de noticiários. É tanta desgraça acontecendo, tanta catástrofe, tanta monstruosidade, tanta gente sofrendo adversidades tão medonhas que ou desviamos os olhos e o pensamento, ou perdemos de vez a fé na humanidade e até mesmo qualquer esperança no futuro. Mas não adianta. Jornal e noticiário são vício e necessidade, no meu caso redobrados, porque me enfiaram numa redação de jornal aos dezessete anos e, de certa forma, jamais saí dela inteiramente.

Claro, não adianta fugir e, para poder escrever, tenho de saber o que está acontecendo. Ligo a televisão para pegar o jornal da manhã. Aparece uma senhora chorando. Precisa fazer uma biópsia com urgência, mas a seguradora à qual pagou pontualmente anos a fio abriu falência. Corte para um senhor de voz meio embargada, ar desalentado. Pagara seu plano com igual pontualidade, por mais de quinze anos. Em caso semelhante ao da senhora, o plano também falira e ele não sabia o que fazer, mesmo se o Estado garantisse a migração para outro plano, porque ele não tinha dinheiro para quitar as novas mensalidades. A reportagem informou ainda que, de 2010 para cá, cerca de oitenta planos faliram, deixando, imagino eu, milhões de pessoas na mesma situação.

Olhei para o semblante dele. Menos idade que eu, talvez, mas mais ou menos na mesma faixa. Deve estar aposentado, deve ter trabalhado a vida toda e agora se esforça por sobreviver com dignidade. Podia ser eu, podia ser a encantadora leitora ou o gentil leitor, Deus nos guarde. A velhice, antes mais ou menos tranquila, tanto quanto a velhice possa ser, vira subitamente um pesadelo. Todo dia nos aterrorizam com histórias e reportagens terríveis sobre os hospitais da rede pública, vemos gente empilhada em corredores infectos, centros de terapia semelhantes a pocilgas, agonizantes à míngua de socorro, mulheres parindo junto a ratos e baratas, tragédias familiares irreparáveis e quase tudo o que tenha descrito do inferno quem, como Dante, já lá desceu. O sujeito faz sacrifícios, priva-se de muita coisa, mas se assegura de que não terá que enfrentar essa assombração. E aí, de supetão, tudo desmorona, nada a fazer.

Sim, ele podia ser qualquer um de nós, o mundo dá muitas voltas. Podia ser eu mesmo, se bem que meu plano não faliu e seja bastante improvável que venha a falir. Fiz Bradesco e com certeza tenho muitos companheiros de plano entre vocês. Mas fiz nos bons tempos, hoje a situação é diferente, como sabem os companheiros. Lembro que, na época meio duro, condição desagradavelmente costumeira em minha sofrida categoria profissional, não pensei em economizar, ao contratar um plano para mim e minha pequena família. Procurei uma empresa de solidez inconteste, perguntei qual era o seu melhor plano, o camarada me disse, eu engoli em seco e assinei. Foi-me vendida a expectativa de sempre contar com atendimento médico conforme minha necessidade.

E até que não tinha queixa, a não ser dos aumentos nocauteantes que se sucedem em cascata, à medida que o segurado vai ficando mais velho. No mais, fui hospitalizado algumas vezes e tudo se deu como previsto e esperado. E, apesar, de geralmente eu pagar aos médicos fora do plano, já fui atendido por médicos credenciados, sem pagar. Mas agora as coisas estão mudando. Segundo eu soube, minha seguradora não quer mais saber de clientes individuais, só empresas e organizações. Deve ser isso, pois a impressão, admito que meramente subjetiva, embora acentuada, é que ela está fazendo o possível para os clientes individuais desistirem de tudo o que já pagaram, praticamente ao longo de toda a vida adulta. Exames de laboratório mais ou menos corriqueiros ainda são fáceis de conseguir, apesar das filas crescentes. Mas exames mais complicados são outra conversa. Cada dia é preciso esperar mais tempo por um agendamento, cada dia o número de hospitais ou clínicas renomados parece diminuir. E os reembolsos, tanto os feitos aos segurados quanto aos médicos, hospitais, laboratórios e clínicas, são ridículos. Um advogado amigo meu me disse que as seguradoras estão adotando, em certos casos, a velha tática de jogar o barro à parede, para ver se cola. O freguês vai se operar do fêmur, o seguro diz que não paga uma determinada prótese, só paga uma outra, considerada pelo médico inferior ou inaceitável. Aí o segurado entra em juízo e, me diz esse amigo, invariavelmente ganha e os planos sabem disso. Apenas, como primeira reação, negam o pedido. Se o prejudicado não tiver a ideia ou a cachimônia de procurar um advogado, a caixinha mais uma vez tilinta no plano de saúde. Como aconteceu comigo, aliás, numa operação de catarata. O Bradesco disse que não pagava a lente prescrita, mas somente outra, bem mais barata, que o médico não aceitava. Aí eu paguei o raio da lente, miséria pouca é bobagem e pouco dinheiro eu tenho muito.

Apesar de citar meu caso, não escrevi nada acima por interesse pessoal. Apenas achei o que me acontece mais ou menos típico, na chamada classe média e com a maioria dos leitores, daí interessar a quase todos. E, como não ia contar mentira nenhuma, disse logo o nome da seguradora. Não é campanha, nem nada, é a veiculação de uma queixa geral, não apenas dos bradesquistas. Os seguros de saúde não deviam nortear-se por padrões de conduta meramente empresariais, não deviam ter o lucro como objetivo em última análise exclusivo. Sua área não é a de um comércio qualquer, a saúde é um bem e um valor da mais alta relevância para a coletividade, uma questão de segurança nacional, como se dizia antigamente. Mas, infelizmente, a coletividade não tem lobby, só deputados mesmo – e eles estão ocupados em garantir seu feliz Natal e próspero ano-novo.

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Como temos visto, parece estar na moda o Estado se meter cada vez mais na vida privada dos cidadãos. Na convicção de que existem, universalmente, comportamentos “certos” ou “corretos”, tecnocratas fazem tudo para impingir-nos essa correção. É comum que sejam alegadas bases “científicas” para definições do normal e do desejável, com frequência misturando-se asininamente a neutralidade da ciência com valores que não têm, nem pretendem ter, fundamento científico, mas cultural, filosófico ou religioso. Acaba-se gerando – e suspeito que isso se vem intensificando – a expectativa de que todos assumam diante da vida a mesma atitude “normal” ou “sadia” e ajam sempre de acordo com ela. Se alguém não se encaixa nessa fôrma, não só padecerá de culpa e estresse, convencido de que, de alguma maneira, é um réprobo anormal ou doente, como, em atos cada vez mais numerosos, o Estado força o cidadão a proteger-se do que é oficialmente considerado danoso ou inapropriado, cerceando-lhe, “no seu próprio interesse”, a liberdade. O Estado sabe o que é bom para nós e não temos o direito de contestá-lo.

Um exemplo dessa mentalidade e das práticas que engendra é a leitura. Parece agora implantada a convicção de que existe uma leitura correta para cada livro. Poemas e romances, devem ser “contextualizados” e depois interpretados segundo a ótica recomendável. Remove-se assim toda a aventura de ler um poema ou romance, a atitude diante deles é a de um patologista diante de um cadáver. Não duvido nada de que, acostumado a essa leitura tutelada, o sujeito saia da escola, torne-se adulto e fique incapaz de ler, a não ser que alguém “contextualize” o texto para ele. Não é preciso contextualizar Dom Quixote, Hamlet ou qualquer outro personagem clássico, assim como não é necessário contextualizar Tarzan ou Sherlock Holmes. Deve-se mergulhar nos clássicos sem intermediários, as descobertas e sustos são pessoais e íntimos. A tutela só é legítima se fruto da decisão do leitor. Se ele pede, que se faça a tutela. Mas, se ele não pede, que sua liberdade, seus horizontes e sua sensibilidade se expandam sozinhos através de leitura, em experiências individuais que não se pode, em rigor, repartir com ninguém.

E a tutela não para por aí, como sabemos. As próprias histórias são alvo dos tutores, que já reescreveram as letras de canções folclóricas infantis, como Atirei o Pau no Gato e O Cravo e a Rosa. Não se atira mais o pau no gato, nem o cravo sai ferido ou a rosa despedaçada. Tudo isso é nocivo, corrompe e perverte e teremos uma sociedade bem menos violenta, quando as gerações assim educadas chegarem ao poder. Imagino que alguém já possa ter tido a ideia, ora sob análise no Ministério da Educação, de ensinar somente as “partes boas” da História, deixando de lado crueldades, desumanidades, atrocidades e tudo mais que possa dar mau exemplo à juventude. Os assírios, por exemplo, não esfolavam ninguém vivo, faziam peeling. Assim como o Santo Ofício não torturava ninguém, aqueles aparelhos todos eram de ginástica.

Estive pensando nessas coisas com algum vagar e a conclusão é que muitas novidades nos esperam. Não creio, por exemplo, que a história de Chapeuzinho Vermelho venha a ser conhecida no futuro. Talvez agora mesmo uma comissão lá no ministério esteja examinando o assunto, para depois baixar normas estritas, que redundarão na proibição dela e de semelhantes. Um mero exame superficial e preliminar é suficiente para demonstrar como é nociva a história de Chapeuzinho e como somos irresponsáveis ao transmiti-la a nossas crianças.

Em primeiro lugar, tão à vista que passa despercebida a quase todos, vem a cor do chapéu. Por que vermelho? Durante a Guerra Fria, era uma óbvia tentativa de instilar subliminarmente, no inconsciente da juventude, o apego a um dos símbolos do comunismo, a cor vermelha de sua praça, sua bandeira e seu Exército. Passada essa era, o vermelho é atualmente a cor do PT. Não fica bem para o partido uma menina como Chapeuzinho, hoje desmascarada como uma pequeno-burguesinha preconceituosa e reacionária, usar um chapéu com a cor dele. Nesse caso, que outra cor, amarelo? Não, também fica chato. Além de ser uma das cores do Brasil, o amarelo pode ofender as minorias de raça amarela. O mesmo se diz do preto, acrescida a circunstância de que, neste caso, os mais radicais poderiam exigir que fosse Chapeuzinho Afro-brasileiro. E por aí marcha uma discussão infindável, terminando-se afinal por abolir a cor e deixar somente Chapeuzinho.

Também grave, embora da mesma forma poucos reparem, é o presente que Chapeuzinho leva para a vovó. Doces? A esta altura da evolução da medicina, levar doces para uma senhora já velhinha? Doces nessa idade deveriam ser evitados. Eles engordam e a maior parte dos ingredientes das gulodices é nociva para os idosos. Para não falar que o consumo de açúcar pode deflagrar um caso de diabete. Não, não, não se pode permitir que o exemplo de Chapeuzinho transforme gerações de jovens em envenenadores de vozozinhas.

O caçador é outro exemplo gritante de incorreção. A caça e o porte de armas no Brasil são proibidos e, portanto, esse pseudo-herói um criminoso. Numa clamorosa falta de consciência ecológica, esse fora da lei mata um lobo. O lobo é uma espécie ameaçada em toda parte e tem seu lugar na Natureza. E, para piorar, é também caluniado, porque o caçador abre a barriga dele e encontra a vovozinha viva, quando se sabe que não há lobo capaz de engolir uma pessoa inteira. Enfim, a história de Chapeuzinho tem tudo para ser banida de escolas e bibliotecas. Quando chegará o dia em que precisaremos de autorização oficial para dar um livro de presente a um filho?

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O ano, para surpresa ou susto de muitos, acabou. Claro, ainda virão a comemoração do Natal e as festas de ano-novo (antigamente se dizia também “ano bom”; porque será que isto caiu em desuso?), mas a árvore da Lagoa já cintila e já há um cheiro de fim de ano no ar. O sorriso e o calor no peito trazidos pelo 13.º se irradiam entre as multidões que vão e vêm diante das vitrines, os táxis ficam um pouco mais difíceis, o gerente da padaria entrega sorridente seu calendário para os fregueses fiéis, com um Cristo louro, de olhos azuis revirados, ilustrando máximas judiciosas e conselhos pios.

O Universo não está dando muita pelota, mas nós criamos datas e dias da semana e lhes atribuímos poderes mágicos. O ano podia terminar, como em várias culturas e religiões, em qualquer outro dia. Mas aqui, para a maioria de nós, a Terra completa seu movimento anual em 31 de dezembro e encaramos essa passagem como algo significativo para nossas vidas, mesmo que não creiamos em astrologia. Ano-novo, vida nova, dizemos, quase sempre tomando a decisão de parar de fumar e limitar o consumo de chope a quatro tulipas por sábado. Também achamos vagamente que a vida vai melhorar, que nossa atitude perante o mundo também vai melhorar, tudo vai ou devia melhorar no ano-novo. No Brasil, abriremos o intervalo anual entre réveillon e o carnaval– ou, mais realisticamente, a Semana Santa, quando, se espreguiçando, o gigante adormecido encarará o batente, em um ano mais feliz que o velho. Infelizmente, não dá para pôr muita fé nisso. A Europa está entrando no grande inverno de seu descontentamento, certamente bastante pior que o lembrado na peça de Shakespeare que cunhou a expressão. Por enquanto, aqui de longe, a gente nem imagina o que está se abatendo sobre países como Portugal, a Espanha e a Grécia. As finanças mundiais são uma gigantesca obra de ficção pervertida, com uma acumulação indecente de dinheiro virtual gerado pelo dinheiro, nas mãos de pouquíssimos, que jamais vão sair perdendo. A situação, criada com a decisiva colaboração de governos e burocracias incompetentes, levará a medidas espantosas, entre as quais cortes de 25% nos salários de funcionários públicos que ainda tiverem a sorte de permanecer empregados e a revogação de direitos adquiridos ao longo de gerações. Acho que nem um povo ovino, como nós, suportaria uma série de golpes tão atordoante.

No entanto, é o que deve acontecer, com certeza entre greves, manifestações, quebra-quebras, atentados e crises políticas. Na internet têm aparecido sugestões para a aplicação dos bilhões de euros que serão emprestados (a juros “saudáveis”) aos países mais aflitos. Dar-se-iam (estou chutando os números, de que não lembro, mas não faz diferença) € 15 milhões, por exemplo, a cada português. O dinheiro seria dividido com o povo diretamente, solucionando de uma tacada os problemas do país. Mas claro que, assim que o cidadão tivesse seus 15 milhões, uma bica (cafezinho, lá em Lisboa) já iria custar, na primeira hora da nova “riqueza”, uns € 20 mil, fechando o dia a uns € 400 mil. E a última garrafa de um tinto modesto, na mercearia, seria arrematada por uns 15 milhões mesmo, depois de uma concorrência acirrada entre dois compradores. Isso porque esse dinheiro é o arroto d Mamon, não tem existência física, é uma virtualidade perversa, um jogo demoníaco de créditos e débitos, que volta e meia leva a crises como a da famosa bolha imobiliária americana e suas consequências (perguntem se há algum dos donos do finado Lehman Brothers passando fome) e agora à europeia. Não pode ser sacado, não é metal sonante (nem bem de consumo, como parecem pensar os que, aparentemente, acham que dinheiro pode ser comido), só tem existência virtual. Isto leva à necessidade de manutenção de um equilíbrio onde sempre a parte mais fraca é que paga a conta. O lucro não pode parar, porque o efeito sobre o restante da economia seria desastroso, um cairia atrás do outro.

Alguns dos elos da cadeia sucumbirão à volatilida de que lhes é própria, vão para o espaço, mas nada de fundamental mudará. Bancos vão quebrar, financeiras vão falir, acionistas vão ter grandes perdas, muita gente (não os ricos) vai ficar na miséria, mas o esquema básico permanecerá, os mesmos continuarão mandando e continuará a haver dinheiro fictício à custa dos súditos. Ainda é cedo para previsões, nessa barafunda em que os acontecimentos se transformaram, até porque a Alemanha, ao contrário do que acham diversos, não quer e não vai sair perdendo nessa. Quem pensa assim, non conhece o Alemanhas, está verrückt, maluco. Enquanto Portugal, Espanha, Grécia e outros se afundavam lentamente sem perceber, ou ameaçavam afundar, a Alemanha continuava com sua esplêndida economia. Como não existe almoço de graça, o almoço dela muitas vezes acarretou dietas restritas em seus parceiros.

O Brasil também faz parte do sistema e não deveremos ficar fora dessa, não vai escapar ninguém, nem os chineses. Mas torçamos para que o tranco nos seja leve. Por enquanto, em nosso futuro, sem otimismo ou pessimismo, só temos as certezas inelutáveis da existência, lembradas por um sábio Benjamin Franklin: death and taxes, morte e impostos. Dos impostos, melhor não falar, antes que criem um imposto para quem falar em imposto. A morte, esta prosseguirá sem grandes percalços, no descalabro da saúde pública, na facilidade com que se mata impunemente e na epidemia de dengue que, dizem autoridades com o ar casual de quem comenta que amanhã vai chover, se abaterá inevitavelmente sobre o Rio de Janeiro. Trata-se de uma doença grave, que mata, e se fala numa epidemia “inevitável” como se isso não fosse nada. Vai morrer gente, mas tudo bem, está previsto. Dá um pouco de medo do que vai acontecer depois do intervalo.

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No domingo passado, eu disse que ia tratar de peitos e acabei mal tocando (deixem de ser maliciosos) no assunto. Fui falar no ministro que, pelo visto, ia instituir o tratamento de “meu querido” e “minha querida” em reuniões ministeriais, para não falar na temível mas não improvável hipótese de que se dirigisse a uma colega, ou à própria presidente, como “minha filha”, e aí tive nervosismo cívico e abandonei os peitos. Hoje, já um pouco desmotivado, mas sem querer deixar de cumprir a promessa (ou ameaça), vou aos peitos.

Quando estudei Biologia no colégio, aprendi, se bem me lembro, que a repetição continuada do estímulo termina por inibir a resposta. Ou seja, se provocado demais, um certo reflexo acaba não dando mais as caras. De certa forma, isso acontece em relação a tudo. De tanto ver ou experimentar algo o tempo todo, acabamos enjoando, enchendo o saco ou nos tornando indiferentes. A banalização de qualquer coisa a barateia, lhe tira o valor e o atrativo.

Acredito que não estou falando somente do pessoal que partilha comigo da proteção do Estatuto do Idoso. Convivo com jovens e já vi sintomas disso neles. Não que tenham perdido a libido, isso não acontece e eles continuam tão obcecados por sexo quanto a juventude sempre foi, desde sempre. Mas sua atitude em relação ao sexo às vezes é meio blasé, outras vezes até entediada. Quando passa uma moça bonita e de roupa reveladora, é comum que, geralmente com a atenção chamada por um mais velho, os rapazes olhem apenas como quem cumpre um ritual, apenas porque homem olha mulher gostosa. É tudo muito fácil, é tudo muito banal, é comum a moça dar na primeira ficada, nada tem mistério, portam-se camisinhas como parte do equipamento padrão.

Tudo bem, tudo pela liberdade, e abaixo a repressão, não proponho mudar nada, comento inofensivamente. Somente acho que, antes da banalização, era tudo bem mais divertido e muito mais emocionante. Hoje as bancas de jornais estão tão cheias de mulheres peladas, em todas as poses e ângulos, que ninguém olha mais, a não ser quando alguma famosa em outro setor resolve também mostrar-se nua. Mas isso mesmo já está perdendo o interesse e posar pelada, que já foi manifestação de vanguardismo, ousadia, independência ou coragem, hoje é quase vulgar e não abrilhanta o currículo de mulher nenhuma.

– Os peitos eram tão misteriosos – me disse uma vez Zecamunista, enquanto aguardávamos a arribada do Foice&Martelo, o bote dele -, que o pessoal não dizia “peito”, dizia “seio”, como um nome de santo. E os peitos tinham até auréolas, como os santos. O certo é “aréola”, mas a santidade impunha “auréola”, até hoje parece que é o mais usado. Lembra do nosso tempo?

Ora, se não me lembro do nosso tempo, os dois pirralhos rondando a ponte à espera do navio que trazia Nélson, o dono do cinema, os rolos de filmes e os cartazes. Apesar de gostarmos de filmes americanos de guerra, de caubói, de espada e correlatos, as férias em Itaparica eram a oportunidade de ouro para a gente ver filme impróprio, ou seja, 15 segundos de peito para 90 minutos de projeção. Na cidade, vários porteiros de cinema, como o do finado Glória, que exibia muito filme impróprio, eram conhecidos como carrascos, não deixavam passar nem carteira de estudante falsificada. O quente era filme francês. Um ou outro italiano, mas os franceses eram mais de confiança. Nélson sabia disso. Geralmente ele se recusava a quebrar o suspense ainda na ponte, mas, no dia seguinte, um palhaço em pernas de pau, ostentando os cartazes no peito e nas costas, circulava, anunciando “hoje o filme é francês e é impróprio!”, certeza de grande bilheteria infanto-juvenil.

Certa feita, houve um problema com um filme impróprio colorido de que os mais velhos já tinham nos falado e no qual, se não me engano, a inesquecível Martine Carol, no papel da magnífica Caroline Chérie, mostrava os peitos oito vezes, contadas pelos muitos que assistiram ao filme oito vezes duas. Na versão que passou no primeiro dia, no cinema de Nélson, dizem que ele esqueceu um rolo e o fato é que só apareceu peito cinco vezes. Indignado, Zecamunista, que nesse tempo não era ainda comunista, mas nasceu com a ideologia exótica no sangue, organizou uma passeata de protesto, na qual eu mesmo tomei parte e que obteve sucesso, porque Nélson acabou exibindo o filme todo para os descontentes. E de fato eram oito cenas de peito (pectovisões, no falar sempre erudito de Jacob Branco), contadas por todos.

– Hoje em dia, todo mundo já viu os peitos de todo mundo, não há mais nem curiosidade – disse Zeca. – Acho que já está valendo até uma alisadinha rápida casual, é quase a mesma coisa que alisar o ombro. Você se lembra de qual era a grande emoção em matéria de peito, no nosso tempo?

– Bem, pegar num peito era um grande momento.

– É, mas, com uns seis meses de namoro, muitos caras já pegavam. Não era esse o grande feito. O grande feito era pegar nos peitos por dentro! Às vezes o namoro acabava, mas o cara não pegava. E, quando conseguia pegar, era inesquecível, a vitória tão arduamente conquistada! Eu tive um amigo, que, aliás, você conhece, mas não vou citar o nome, que deu a primeira pegada por dentro e depois teve dificuldade em tomar o ônibus de volta para casa. Não tinha nada mais emocionante, o corpo todo vibrava. Hoje o peito por dentro é uma abertura que muitos até dispensam, preferem um bom videogame.

– É, talvez nem tanto, mas…

– Eu estou apostando nessa tendência – disse ele, com uma risadinha. – Eu vou fundar um grupo popular de atendimento às mulheres desvalidas, vítimas dos que preferem os videogames. Eu vou revalorizar os peitos delas, vou abrir horizontes novos! E espero que alguns sutiãs também, he-he.

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Certos escritores, como eu e alguns amigos meus, têm dificuldade em planejar o que produzirão. Podem escolher assunto, fazer esquemas ou até diagramas, mas frequentemente um outro assunto se intromete onde não foi chamado, ou um personagem resolve adquirir autonomia e caprichos: o autor quer casá-lo, ele não casa, quer que ele morra e ele não morre e assim por diante. O resultado acaba por ser uma surpresa para o próprio escritor. Hoje mesmo está sendo assim. O título aí em cima não tem nada a ver com o que eu pretendia (e ainda pretendo, se não houver outros percalços) abordar hoje, mas foi digitado quase em piloto automático. Quando dei por mim, já estava ele aí.

É o seguinte. É que, até o momento em que escrevo, ainda não foi dispensado esse ministro parlapatão, que veio a público vociferando bravatas arrogantes e se apresentando como o durão aqui do pedaço, um exemplar cafajeste que certamente se acha sensível e deve cantar “Chão de estrelas” em serenatas partidárias, chorar em cerimônias escolares e mandar “um beijo no coração” de correligionários fiéis. Se eu fosse a presidenta, a demissão viria mais rápido do que a bala que ele afirmou ser necessária para sua saída, por falta de propriedade, senso comum e educação, para não falar em intimidade indevida, com um tuteio insolente e grosseiro, que sugere uma proximidade inexistente, quase promiscuidade, tratando-se da chefa do Executivo. “Eu te amo” à presidenta, uma conversa; “eu te amo” lá pras suas negas. Até Marilyn Monroe, que era Marilyn Monroe, quando cantou parabéns para Kennedy, entoou “happy birthday, Mr. President” e não o “dear John” ronronado a que, dizem por aí, ela até tinha direito.

Isso para só ficar num aspecto, porque, de resto, a defesa dele tem-se constituído, como já é de praxe, em negativas indignadas e invectivas contra a imprensa. Trata-se, segundo ele, de denuncismo. Conversa velha de quem não tem nada a dizer. A não ser que tudo o que venho lendo e vendo sobre o assunto tenha sido forjado, está patente que ele mentiu. Mentir oficialmente, na condição de ministro de Estado, devia ser mais que suficiente para cartão vermelho. Devia também dar processo e cana dura, embora, naturalmente, na atual conjuntura, isso seja incogitável. E, de qualquer forma, mentiu. Cadê o mais que justificado – perdão, senhoras – pé na bunda? Estão talvez organizando uma cerimônia saideira, como aquela em que o ex-ministro do Esporte foi aplaudidíssimo e só faltou receber uma condecoração, com foguetório e banda de música? Dizem que a presidenta (geralmente escrevo “a presidente”, mas hoje precisei enfatizar o gênero dela) está preocupada em não deixar que a imprensa faça demissões ou force saídas. Mas não é a imprensa que demite ou força renúncias. São os fatos comprovados. Se se tratasse da mera vontade da imprensa ou de denuncismo gratuito, não haveria respaldo para as acusações. A imprensa está cumprindo seu papel, espelhando o que ocorre no país. Todo mundo sabe que se rouba em tudo quanto é canto, de todas as formas imagináveis. Rouba-se tanto, de clipes de papel a centenas de milhões de reais, que seria impossível levantar tudo. Portanto, o “denuncismo” não vai parar tão cedo, todo dia brotam ladroeiras novas.

Tem a famosa governabilidade, responsável pelo estabelecimento de níveis assombrosos de cinismo, cara de pau e falta de princípios, que já eram altos antes, mas que atingiram novos patamares durante os governos de Lula. Os partidos não querem dizer nada, a não ser a aglomeração de interesses empreguistas, clientelistas e de locupletação mesmo. Para satisfazê-los, é só distribuir colocações, posições, empregos, mamatas, sinecuras, ardis fiscais, truques salariais e outras benesses do poder em que a nossa república abunda. O Estado é de fato a Grande Teta e o poder público, em todos os níveis, uma espécie de besta disforme e meio nojentona, em que se nutrem parasitas hematófagos de todas as extrações, de vampirões federais a pernilongos municipais

A governabilidade fica garantida assim e o pessoal adere ao governo pelas conveniências mais rasteiras. Historicamente, o Brasil foi sempre um país adesista. É costume aderir ao governo, pois fora dele, para muitos, não há salvação. Se o governo contrariar jeitosamente os partidos, eles não se rebelarão. O que é o partido X, senão os interesses de dr. Fulano, dr. Beltrano e dr. Sicrano? O indispensável é manter as bocas, isso é que é o exigido. Pela pátria, não, mas por isso eles farão sacrifícios, é pelas bocas que eles aderem e é pelas bocas que ficarão. Portanto, a governabilidade não é tão exigente. Se o governo contrariar o partido, mas, pelo outro lado, mantiver o pessoal amamentado, este permanecerá manso, quieto e obsequioso.

Agora vocês vejam como são as coisas. Falei em amamentação logo acima certamente movido por uma associação inconsciente. É que meu assunto hoje era bem mais ameno. Era peito. Isso mesmo, peito, mama. E mama feminina, pois continua válida, pelo menos para a suposta maioria, a observação de que, no homem, ela nem é útil nem ornamental. Eu pretendia coligir alguns pensamentos que me ocorreram, ao ver novamente mulheres de peito de fora, em manifestações na Europa. Fiquei matutando sobre o que é um peito hoje, em comparação com um peito há não tanto tempo assim. Creio que minhas reflexões ou reminiscências ecoarão até entre os mais jovens, que, sustento eu, têm, sem dar-se conta, nostalgia por tempos mais recatados, ou pelo menos não tão escancarados. Afogados em peitos e traseiros expostos de todas as formas e por todos os lados, tenho certeza de que há muitos entre vocês que querem de volta suas boas e velhas repressões, era muito mais divertido. Trato disto na próxima semana, se os ministérios permitirem.

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Tive políticos próximos na família. Hoje em dia, para muitos brasileiros, dizer isso é pior do que se confessar descendente direto e admirador dos vendilhões expulsos do templo por Jesus Cristo. Mas acho que meu caso não é típico. Meu pai, que foi deputado estadual em Sergipe e vereador em Salvador, além de diversas vezes titular de secretarias estaduais ou municipais, tinha vocação de político, mas lhe faltava o talento para isso. Apesar de muito culto e bom orador, jejuava na arte e na matreirice necessárias ao político. E morreu depois de penar durante anos a construção de sua única casa, deixando somente a dita casa e uma pensão para a viúva. Portanto, não deve ter roubado e estou convicto disso, embora não possa dizer que ele tenha sido cem por cento infenso a mordomias, porque me lembro da gente passeando de carro oficial em Aracaju – e de nada mais, nesse departamento.

O outro político foi meu avô materno. Meu avô foi coronel, quando Itaparica ainda era interior. Como creio que já contei aqui, me lembro de eleições movimentadas, lá na ilha. A casa do coronel tinha acomodações externas para o eleitorado, que se movimentava durante todo um dia azafamado. Aliás, minto: não era somente um dia. Havia uma infraestrutura a manter. Analfabeto não votava e a prova de alfabetização era a assinatura do nome e, portanto, ninguém se preocupava em ensinar o eleitor a ler, mas a desenhar o nome. Talvez pareça fácil, mas podia levar meses, ainda mais que as refeições eram de graça, durante o curso. E ainda me lembro de Seu Nezinho do Baiacu, que parava para tomar fôlego, no meio da assinatura.

Cuidava-se também das muitas manobras envolvendo os envelopes com as cédulas (as chapas, como se dizia por lá). Supostamente, o eleitor escolheria suas chapas, as enfiaria no envelope e subsequentemente na urna. Mas os eleitores de meu avô, naturalmente, recebiam seu envelopes já prontos, como acontecia em milhares de municípios, ou mesmo todos eles, em maior ou menor escala. E com a rigorosa instrução de não mostrar seu conteúdo a ninguém, nem ao bispo. “O voto é secreto!”, advertia-se, como quem diz que, se alguém o mostrasse, entrava em cana dura. Na verdade, era precaução contra o golpe aplicado por todos os candidatos, que consistia em pegar o envelope “somente para ver” e dar um jeito de trocar uma ou mais chapas, ou mesmo o próprio envelope. Havia especialistas nessas operações e meu avô usava os serviços de vários, tanto na ofensiva quanto na defensiva.

Porque muita gente só admitia votar de paletó e gravata, um setor especializado era dedicado ao vestuário e se forneciam até umas borrifadas do perfume que alguns achavam indispensável. De forma análoga, os calçados. Muitos eleitores só haviam usado sapatos uma ou duas vezes na vida e assim mesmo alheios ou herdados, enquanto outros desconheciam seu emprego, chegando a manifestar um certo medo deles. (Seu Nezinho só calçava sapato gemendo e invocando o amparo dos santos). O setor das refeições, comparável apenas ao do jejum da Semana Santa (tinha gente que aparecia para jejuar na casa de meu avô já na segunda-feira e só ia embora no sábado de Aleluia, de pandulho estufado de todo tipo de comida, com a rigorosa exceção de carne, que era o alvo exclusivo de jejum), funcionava em sistema de rodízio desde as quatro da manhã e começava de véspera, com a chegada, em saveiro, canoa ou lombo de jegue, do eleitorado do “interior”, longe da sede do município.

Também não creio que meu avô tenha roubado. Ele mesmo, que eu saiba, nunca exerceu cargo eletivo nenhum (tinha um belo emprego público federal), mas também não acho que, à parte sua sinecura, tenha metido a mão em dinheiro, público ou alheio. Pelo contrário, só vivia envolvido em assuntos e polêmicas cívicos, tanto assim que não ligava para as duas ou três fazendolas e o resto do patrimônio que herdou. Caiu tudo em usucapião dos ocupantes e sobrou somente a casa (onde eu nasci e que, embora uma fração do tamanho original, está até hoje com a família). De resto, ele gostava de exercer seu poder municipal, de protetor dos necessitados, que em troca deviam somente gratidão eleitoral, de defensor das tradições da ilha e de árbitro de disputas.

Tudo o que contei era normal e, com as necessárias diferenças regionais e circunstanciais, praticado em todo o país. Em grande parte dele, ainda é, com outras caras e nomes, mas a mesmíssima coisa. Desde que nos entendemos, vemos os poderosos enricar ou “se fazer”, é parte de nossa vida. O voto é ainda trocado por um favor ou pela solução de um problema pessoal. E nunca, no Brasil, o cargo público foi visto como serviço. Servir é a última coisa que ocorre ao chamado servidor público, estendido o termo ao governante. Nossa política não é feita de ideais, mas de ambições. Estamos acostumados a ver a política como um meio de ascensão pessoal, não somente de status, mas patrimonial e suspeito que, no fundo, a maioria de nós considera isso legítimo. Estamos habituados ao cartão de apresentação, ao pistolão, ao tráfico de influência, aos privilégios para os quem têm os relacionamentos certos.

Acho que não há exceções, entre os brasileiros: todo mundo, desde a infância, ouve falar que a maioria dos políticos é formada de corruptos e ladrões. Todos sabem da história de pelo menos um rapaz pobre, de família humilde, cujo pai tinha uma pequena padaria de subúrbio e que hoje é gordo e bilionário. Assim ou assado, fomos criados vendo esse cenário se reproduzir e – aí é que é o chato – segue-se a conclusão é que todos nós, de uma forma ou de outra, temos uma formação de corrupto e, em certos casos, até uma empatia meio cúmplice com alguns deles, quase alguma ternura. Por isso é que continuam ativos e impunes. Nós compreendemos, a vida é assim mesmo.

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