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Archive for the ‘João Ubaldo – 2013’ Category

Querido Diário,

Acabou o ano, o tempo passa cada vez mais depressa. Hoje vai aparecer ainda mais gente, lá no boteco. Já viraram tradição da casa os cumprimentos de fim de ano, bons desejos, muita paz, muita saúde, essas frescuras automáticas que todo mundo diz da boca para fora e em que ninguém presta atenção. Eu retribuo tudo o que me dizem, mas cada dia me exaspera mais a parte do “você está muito bem”. Só quem ouve essa conversa do “você está muito bem” é velho, ninguém diz isto a um jovem. É um saco, até porque muitos falam estas coisas somente para receber a retribuição e a gente tem de cumprir o ritual. Ôi, tudo bem, mas, cara, o tempo não passa para você, você está muito bem, em grande forma! Não, você é que está ótimo — e fica essa nênia ridícula de lá para cá, um bando de despencados caquéticos querendo engabelar o calendário, para mim é triste.

E também procuram empregar palavras mágicas, como se alguma palavra melhorasse a condição do velho ou de alguma maneira a homenageasse. Essas palavras e expressões são ofensivas, porque dão a entender que a velhice é uma condição tão vergonhosa que deve esconder-se por trás de eufemismos detestáveis. Idoso é a mãe, ancião é a mãe, vovozinho é a mãe, melhor idade, terceira idade, feliz idade, tudo isso é a mãe, não se discute. O certo é “velho”, no máximo “coroa”. Os que são contrários ao uso da palavra “velho” alegam que ela soa preconceituosa ou discriminatória. Mas é claro que soa, velhice é defeito. Ninguém diz em voz alta que é defeito, mas todo mundo acha que é. É semelhante ao que ocorre com “pobreza”. Pobreza também é defeito. Do contrário não se diria “pobre, porém honesto”. Por que o “porém”, por que a adversativa? Se ser pobre não fosse defeito, dir-se-ia “pobre e honesto”. Mas, claro, o que a frase afirma é que, apesar de pobre, o sujeito é honesto. “Velho” é a mesma coisa, gosta muito de ser seguido por uma adversativa, como, por exemplo, em “ele é velho, mas entende tudo o que a gente fala”.

João Ubaldo no Tio Sam

Bem, o fato é que hoje deve aparecer no boteco um grande número de velhotes, de todos os estilos. Tem seu lado bom. Vamos reconhecer que a juventude impacienta um pouco os mais velhos e, como já se observou, conversar com jovem cansa muito, porque se tem que falar demais. Vão chegando os velhotes, todos invariavelmente cumprindo o ritual do “você está bem, você está muito bem”. Em seguida, a troca de novidades. Um tomou um porre de gim em agosto que o deixou torto até hoje, de maneira que não tem saído. Outro está usando fraldão, mas sai numa boa. Outros se foram definitivamente, ou estão com a partida mais ou menos marcada. Dois ficaram viúvos, três viajaram a Buenos Aires e seis deixaram de beber destilados. No mais, alguns relatórios de praxe, o animado cotejo de resultados de exames e remédios, papos acalorados sobre colesterol, triglicerídeos, PSA, glicose, antidepressivos, artrite, implantes dentários, pontes de safena, colonoscopia, esteatose hepática, função cognitiva, câncer de pele, ultrassonografia abdominal, cataratas, perda óssea, estatinas, próstata e o renomado exame da dedada. E, finalmente, todos professarão horror à ideia de ver os fogos do réveillon.

Quando eu era jovem, achava bonito ter nascido num primeiro de janeiro, começando a vida junto com o ano e fazendo aniversário num dia de festas e foguetes. Quem me viu, quem me vê, hoje é exatamente o contrário. E quanto mais velho fico, a sensação piora. Não gosto de confessar isto nem a meu diário, mas a verdade é que, todo dia 31 de dezembro, quando os fogos começam a estourar, eu acho que chegou minha hora, dali não passo. Já consultei até dois psiquiatras por causa dessa maluquice, mas o medo de estuporar no fim do ano não passou, só que agora eu tomo umas bolas que eles me receitaram e fico calmo. Cheguei a pensar em me encher dessas bolas e romper o ano dormindo, mas dormir achando que não vai acordar também não é uma boa, não tem jeito para minha situação.

Quem mais fez aniversário este ano? Às vezes parece que eu sou o único no boteco que fica mais velho. Bem, as mulheres mentem ou escondem. Nessa questão de idade, mulher não vale, elas diminuem a idade até para o IBGE. Mas os homens não ficam muito atrás. O Silveirinha nega a idade sem a menor dúvida, já o peguei em contradição mais de uma vez, ele não decorou direito o ano em que nasceu de mentirinha. O Afonso, o Geraldo e, com quase toda a certeza, o Mariano diminuem a idade. Para não falar no Macedinho, que não revela a idade, mas que todo mundo sabe que foi proeiro da arca de Noé. Um dia destes eu me aporrinho e corto uns dois anos também. Tenho mais cabelo que o Afonso, o Geraldo e o Silveirinha e a menor barriga da mesa.

Se fizer sol, vamos viver um começo de tarde animado, com as mulheres passando para a praia e a gente apreciando, na medida do possível. De modo geral, as damas despertam nostalgia e às vezes memórias talvez um tantinho fantasiosas. E há os rabugentos despeitados, como o Linhares e seu compadre Arnaldinho, que desdenham a mulher atual e proclamam a superioridade da mulher do tempo deles. Para eles, as mulheres daquele tempo eram melhores e não se barateavam, se exibindo e transando a torto e a direito, como as de hoje em dia. E os homens, claro, também eram melhores, não eram como esses meninões atuais, que vivem tomando anabolizantes e surfando, deixando o mulherio completamente desatendido. Eu fico assim olhando para o Linhares e o Arnaldinho falando besteira e sempre recordo o grande filósofo que disse que o verdadeiro mal da nova geração é que nós não pertencemos mais a ela. Bom domingo, querido Diário. Mais um, quantos mais ainda?

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— Eu vejo você aqui no boteco todo fim de semana, há não sei quantos anos, de forma que acho que posso dizer que hoje somos amigos. Mais do que leitor, eu me sinto seu amigo, sinto que conheço você. Apenas nunca tivemos a chance de conversar.

— Foi por acaso, porque todo mundo aqui conversa comigo.

— E eu gostaria de conversar também, mas fico meio acanhado de abordar certos assuntos e não me fazer entender bem.

— Que nada, pode falar sobre o que você quiser. Prefiro que não seja sobre o Vasco, mas, de resto, tudo bem.

— É que talvez você possa colaborar num projeto de interesse geral. Você botaria o meu nome no jornal? Já não digo como personagem, mas numa citação. Você às vezes faz isso. “Meu amigo Fulano disse isso ou aquilo”, você escreve isso de vez em quando. O que eu queria é simples: é você citar meu nome no jornal, não precisa elogiar, basta citar, você sabe fazer essas coisas muito bem. Volta e meia, assim como quem não quer nada, você me cita.

João Ubaldo

— Mas o que é que eu vou dizer?

— Esta é a segunda parte, é a parte do aposto. A parte do aposto é a seguinte: você bota um aposto depois de meu nome. Pode ser “o Feliz”, mas, se você preferir outro adjetivo, tudo bem.

— Você quer ser conhecido como o Feliz?

— É, qualquer coisa assim. Eu quero projetar uma imagem de felicidade e realização, quero ser um símbolo para os homens de minha geração.

— E você acha que vai conseguir tudo isto, se eu botar seu nome no jornal?

— Não, somente com isso, não, isso é a parte inicial, a parte da construção de minha imagem. Eu venho pensando nisso a mil por hora, as coisas acontecem vertiginosamente. Todos os problemas humanos são sexuais e eu estou resolvendo cada um deles. Eu criei um aplicativo sem precedentes, revolucionário. Só falta acabar uns detalhezinhos, mas vai ser um grande passo na história sexual da humanidade, ou seja, na história da humanidade em geral, pois o problema sempre foi conseguir comer as mulheres e, depois de conseguir, comer corretamente. Este objetivo raramente é alcançado, daí a alarmante taxa de insatisfação, reclamação e rebeldia entre as mulheres, que agora ameaçam banir os homens de seus leitos amorosos e até mesmo dispensar a colaboração masculina para se reproduzir! Zangões! É isso o que seremos, zangões! Os machos que nascerem serão sacrificados em rituais onde seus pintinhos e ovinhos serão salteados e servidos a elas como tira-gostos, com exceção de alguns poucos, que vão ser castrados para compor corais de vozes juvenis, e mais dois ou três no zoológico e nas aulas de arqueologia!

— Rapaz, talvez você tenha ido um pouco fundo demais no chope, não foi, não?

— Fundo ao chope eu fui, mas não vou dirigir e, sobretudo, estou suficientemente sóbrio para perceber que você não parece nem um pouco interessado em colaborar com uma iniciativa de relevância pública, como esta. E eu só estou lhe pedindo para botar meu nome no jornal, com o aposto. Do resto cuido eu, de todo o resto.

— Sim, eu imaginava que devia haver alguma coisa, além de botar seu nome no jornal.

— Claro. Eu já lhe falei que criei um aplicativo. Ainda não botei nome, mas não vai ser nenhuma dessas frescuras em inglês, acho que vai ser “Aperparado” mesmo, é uma homenagem a minhas origens nordestinas. É completo. Por exemplo, você sabe que, hoje em dia, o homem não precisa mais ficar sobressaltado com o fantasma da brochada fora de hora, por ter calculado mal o tempo da tomada do antibrochante. Nada disso, ele toma sua dosezinha todo santo dia, está sempre preparado, é o novíssimo tratamento. E o aplicativo lembra a ele a hora de tomar a pílula, com uma cornetadazinha de hastear bandeira muito discreta. O aplicativo lembra a ele todos os cuidados que tem que ter e tudo o que tem que fazer, em relação a cada contato, aparência pessoal, remédios, piadas, comentários sobre os últimos filmes, tudo, tudo. Com esse aplicativo, o usuário pode mudar de comportamento sexual de acordo com o perfil de cada parceira: se é no claro ou no escuro, se é com trilha sonora de gemido ou palavrão, se é com todas as armas e assim por diante, nunca mais uma mancada ou passo em falso. Vai ser criado o homem perfeito, vai estar ao alcance de cada um ser o homem perfeito, o verdadeiro homo erectus.

— Não acredito nisso, há muita coisa que o aplicativo não pode fazer.

— Mas é claro! É para isso que eu bolei o sexpa, o spa do sexo. Meu objetivo é fundar uma franquia e ter sexpas em todas as grandes cidades, logo nos primeiros anos. O sexpa é destinado a promover a felicidade sexual, oferecendo cursos e estágios de acordo com as diferentes necessidades e características dos clientes, tudo no maior profissionalismo e eu acho até que pode ser abatido no imposto de renda, como despesa com educação e saúde. Entendeu por que eu preciso que você bote meu nome no jornal? É meu pontapé inicial.

— Eu não posso fazer isso, é um empreendimento comercial.

— Ih, senti a fera, é isso mesmo, hoje em dia somente otário é que não aproveita, tem que cobrar mesmo, business is business. Tudo bem, você continua a promoção e leva um percentual da receita, depois a gente acerta os detalhes. E ainda arrumo para você um mês de sexpa grátis por ano. Quando é que você acha que vai poder botar meu nome no jornal?

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Itaparica sempre marcou presença no futebol nacional e aí está Obina, que não me deixa mentir. Quando eu era jovem, no distante século passado, cheguei a envergar a gloriosa camisa 2 do São Lourenço, sob a alcunha de Delegado, a mim aposta pelo técnico Hélio Gaguinho em alusão a meu eficaz policiamento da grande área — beque direito de recursos talvez limitados, mas aplicadíssimo. Nessa época, o campeonato da ilha era aguerridamente disputado por diversos times hoje legendários, que protagonizaram epopeias futebolísticas inesquecíveis pelo Recôncavo afora, como por exemplo a que envolveu meu saudoso amigo Vavá Paparrão, na condição de ponta-direita do Esporte Clube Ideal, enfrentando, em contenda decisiva, na casa de um adversário que jogava pelo empate, a por todos respeitada equipe da Associação Atlética São Bartolomeu de Maragogipe. Não estive presente no episódio, mas ouço relatos desde pequeno.

São dessas histórias do futebol e do grande atletismo. Logo no começo do primeiro tempo, Paparrão recebeu um lançamento em profundidade de Waltinho Filósofo, à altura da intermediária, dominou o balão de couro, fechou para o centro, traçou um, traçou dois, traçou três, traçou quatro e arremessou rasteiro de canhota, sem chance de defesa para o famoso guarda-vala maragogipense Carrapato, que ainda mergulhou na direção do esférico, mas não viu nem a passagem dele. Foi um delírio na torcida, com invasão de campo e tudo mais. Inconformada, a agremiação da casa passou a perseguir Paparrão com violência por toda a cancha, encorajada pela conivência de Sua Senhoria, que fazia vista grossa e mandava seguir o jogo, sem ligar para Paparrão contorcendo-se em dores no gramado.

Não adiantou, porque, como o gigante Anteu, que se erguia revigorado de cada queda ao solo, Vavá se levantava para de novo infernar a defesa adversária. Terminou marcando mais um gol e dando um passe açucarado para Bertinho Penico fazer o terceiro no apagar das luzes, uma vitória esmagadora. Festa na delegação itaparicana, Paparrão aclamado como o herói da jornada. Mas eis que, ao tentar juntar-se aos que faziam a volta olímpica, ele não conseguiu firmar-se em pé. Para resumir: tinha fraturado a perna em dois lugares, durante o jogo, mas — sabe como é, sangue quente, disputa na raça, o sujeito fica fora de si — só foi notar depois que saiu de campo. Havia diversas testemunhas, mas, infelizmente, todas elas também já se finaram.

No tempo em que o Bahia se concentrava na ilha, todo mundo ia assistir aos craques locais botando os medalhões na roda, notadamente Chupeta. Este, aliás, eu mesmo conheci e tentei marcá-lo diversas vezes, na companhia de meu compadre Edinho. Compadre Edinho é um burro de um homem deste tamanho, seguramente para mais de sete arrobas, e nós dois partíamos em dupla, para marcar Chupeta na praia. Chupeta era desses canhotos, como Maradona, que escondem a bola junto ao pé esquerdo, mas eu tentava fazer com que ele a adiantasse e Edinho jogava um punhado de areia na cara dele. Não adiantava nada e ele sempre passava, do mesmo jeito com que passava por todo o time do Bahia, que, por sinal, tentou levá-lo diversas vezes, mas não conseguiu.

Tudo isto é para mostrar que o debate encetado no Bar de Espanha, no qual se chegou até mesmo à alarmante — e certamente alarmista — sugestão de que o futebol acabou, conta com participantes e plateia à altura da importância do assunto, brasileiros que sabem o que estão dizendo, é bom prestar atenção. Lá dos fundos, mal se vendo de onde ela saía, uma voz roufenha, logo por todos reconhecida, interferiu na discussão.

— O futebol acabou quando acabou o gol de bunda — disse Zecamunista, saindo da sombra e levantando a pala de seu boné da Marinha Soviética. — Todo mundo aqui já viu gol de bunda, alguns até já fizeram, é para curtir com a cara do adversário mesmo, não é esporte? Agora não pode mais. Não pode fazer embaixada, não pode dar dribles supérfluos, Garrincha não ia poder mais, agora só pode jogada politicamente correta! Daqui a pouco vão fazer a lista das jogadas que pode e que não pode! E vão patentear as jogadas, vão vender patrocínios para as jogadas, só quem vai poder fazer é quem o patrocinador autorizar! Vai ter o voleio da Coca-Cola, a cavadinha da Skol e a pedalada da Caloi! Vão regular tudo, vão vender tudo, vão…

— Tenha calma, Zeca, também não é assim.

— É pior! Acabaram com o juiz ladrão! Não pode acabar com o juiz ladrão! Onde já se viu futebol sem juiz ladrão?

— Tenha paciência, não sei como alguém pode defender o juiz ladrão.

— Pois eu defenderei até a morte a preciosa figura do juiz ladrão! Como vão ficar as torcidas derrotadas, no dia seguinte? Quantas vezes a atuação de um bom juiz ladrão evitou uma briga séria ou até um suicídio? Tem que ter juiz ladrão! Agora vão botar máquina para tirar dúvidas e corrigir os erros. Que graça tem isso, empobrece o futebol! O futebol acabou, estão acabando de matar o futebol!

— Exagero seu, as torcidas continuam.

— Continuam, é uma maravilha. O camarada vai ao estádio e recebe uma paulada na cabeça e um chute na barriga. Ou então veste a camisa do time, vai ao boteco e toma um tiro na cabeça. Isto não é torcer por futebol, é esporte radical. Caçar tubarão é mais seguro.

— Já senti que você não vai nem torcer pela seleção, nesta Copa.

— Não, isso eu vou, é uma questão profissional, é a única chance de apostar no Brasil e ganhar.

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Vocês devem ter lido nos jornais, ou ouvido nos noticiários. A Amazon, cujo assustador objetivo é vender tudo a todo mundo, começou a testar um novo método de entrega expressa, por meio do qual o freguês receberá mercadorias de até pouco mais de dois quilos no prazo de trinta minutos, a partir da encomenda. A entrega poderá ser em qualquer ponto do território coberto pelo sistema, inclusive a sacada de um apartamento ou mesmo, imagino eu, um quarto de dormir. O transporte será tarefa de um drone (que quer dizer “zangão” em inglês, mas ninguém fez a tradução e ficou “drone” mesmo, em português), isto é, uma pequena ou minúscula aeronave sem tripulantes, cujas tecnologias se vêm aperfeiçoando com uma velocidade que torna quase impossível acompanhá-las.

Por enquanto, há diversas limitações e se espera até mesmo a autorização do governo para o início dos serviços. Mas isso virá, mais cedo ou mais tarde, assim como o desenvolvimento tecnológico para que o sistema – e muitos outros, igualmente baseados nos drones – se torne economicamente viável, ou mesmo imperativo, diante da concorrência entre os fabricantes e fornecedores de serviços. Já hoje mesmo, os drones são usados bem mais do que se divulga comumente. Não se limitam, como muitos pensam, à destruição de alvos no Afeganistão e a ações de combate em territórios longínquos, de que só tomamos conhecimento pela televisão. Muitas polícias urbanas, no mundo todo, já os empregam e também, com toda a certeza, serviços de inteligência e combate ao terrorismo. Acompanham os movimentos de indivíduos sob suspeita, filmam e gravam encontros, documentam movimentos de protesto ou individualizam e identificam participantes de multidões e podem transportar e acionar vários tipos de arma. É possível equipar um drone que sobrevoe locais públicos predeterminados e, conectado a sofisticadas bases de dados e programas de reconhecimento de feições, localize rapidamente algum fugitivo ou clandestino, que, se for o caso, poderá ser eliminado por meio do mesmo veículo, o qual disparará uma pequena granada, reduzirá a vítima a picadinho e, em seguida, desaparecerá sem deixar pistas. Dizem que este tipo de coisa já foi feito e continua sendo feito, não há como ter certeza.

E os drones estão cada vez menores, mais eficientes e mais sabidos, podendo, em alguns casos, ser controlados até mesmo por meio de um desses celulares espertinhos que hoje se encontram em toda parte. Um drone adequadamente equipado é capaz de filmar, de perto, em alta definição e som de boa qualidade, a uma distância da qual nem de binóculo será visto, tudo o que se passa num aposento. E os preços tendem a baixar sempre, de maneira que, se hoje só está ao alcance de governos e bilionários ter um drone como esse, daqui a pouco não será impossível que um cônjuge suspeitoso compre ou contrate um personal drone para o parceiro suspeito de infidelidade. Os ricos e poderosos talvez não venham mais a precisar de seguranças humanos, mas simplesmente de uma flotilha de drones pairando discretamente no alto, pronta a zapear o primeiro que esboce um gesto mais agressivo, ou a reconhecer e denunciar o rosto de um desafeto.

A vida, principalmente, nos grandes centros urbanos, vai mudar, embora não necessariamente para melhor. Numa cidade de engarrafamentos paralisantes, como São Paulo, sem dúvida haverá uma lua de mel deslumbrada com as entregas por drone. Mas receio que durará pouco, porque o enxame de centenas de milhares de drones, logo depois de passados uns dois meses, ia tornar necessária a adoção de estado de emergência na cidade, se não fosse disciplinado prontamente. Imagino drones colidindo no ar a cada vinte segundos, caindo na cabeça de gente e em cima de casas, derrubando helicópteros e sendo sugados por turbinas de aviões adentro. Não vai dar certo, de maneira que terá de ser instituído um grupo de trabalho para baixar normas de trânsito de grande complexidade, abrangendo horários, altitudes, velocidades máximas e assim por diante, com o resultado de que o engarrafamento logo voltará, desta feita por todos os lados. Os drones serão os motoqueiros do ar, mais onipresentes do que são hoje os motoqueiros de terra, e botar a cabeça para fora da janela de um edifício vai dar medo de trombar com um drone.

A segurança também será afetada, pois o mínimo que se terá de fazer, mesmo que se more no quadragésimo andar, é manter as janelas fechadas, se possível com vidraças blindadas. Até os helicópteros particulares poderão ser atacados e sequestrados por quadrilhas de drones. Ficará mais fácil para a polícia patrulhar grandes áreas, se estiver usando pouco pessoal e muitos drones com câmeras, mas a bandidagem também dispõe de armamento de primeira linha e terminaremos com batalhas de drones, em que não vai haver baixas nem na polícia nem entre os bandidos, mas certamente sobrarão projéteis perdidos para os circunstantes.

Tudo isso só ratifica que já é lugar-comum observar que a privacidade acabou. Não é por assim dizer; acabou mesmo e os vestígios que ainda sobram por aí também vão embora brevemente. Valores que venerávamos como perenes agora se encontram à beira da caduquice e deverão ser substituídos por outros, mais em consonância com novos tempos e novas condutas. Há não muito, por exemplo, era cafajestada para os homens e impensável para as mulheres fazer comentários sobre performances sexuais de ex-parceiros. Hoje, é tema de redes sociais, assunto para tevê e bate-papos no boteco. Não tem mais sentido questionar se vale a pena perder a intimidade e a liberdade em troca de segurança. Os que governam o mundo já decidiram que sim, faz tempo.

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No domingo passado, andei repisando aqui umas verdades, bem sei que meio cediças, sobre como os contemporâneos dos fatos se enganam quanto às consequências ou a importância daquilo que testemunham. Tem sido sempre assim e as gerações presentes não constituem exceção. Muitos de nós — inclusive eu, é claro — podemos estar chegando a conclusões ou fazendo comentários sobre o mensalão que se revelarão completamente equivocados, aos olhos de nossos pósteros. Ninguém sabe, nem pode saber, o que será relevante no futuro e o que será esquecido.

E a verdade também é que, aqui entre nós, ando meio empanzinado com esse dramalhão do mensalão. E ouso crer que muitos de vocês também. Sim, manda a boa cidadania que nos mantenhamos atentos à conduta dos nossos governantes e líderes políticos, tudo bem. Mas isto não significa sucumbir sob a aluvião de artigos, reportagens, entrevistas, discursos e pronunciamentos proféticos que nos vem soterrando. Qual é o problema do mensalão, que é que vai acontecer? Vão reverter alguma sentença? Vão continuar a dizer que o julgamento foi ilegítimo, sem observar que daí se segue a ilegitimidade das instituições, inclusive as que mantêm os atuais governantes no poder? Só é legítimo o que interessa a eles, só vale quando é a favor? Como sabe qualquer torcedor, o choro é livre, mas não altera o placar, nem confere título.

Até admito que nossa tradicional inexperiência em prender gente fina e ladrões de milhões venha rendendo episódios cômicos ou dramáticos, conforme o ponto de vista. Certas situações são patéticas e não deve haver regozijo com o infortúnio de ninguém. Como querer, no Brasil, um cárcere com um mínimo de dignidade, sem que isto seja um privilégio? Eles provavelmente dirão, acredito que com sinceridade, que não querem privilégios, mas o tratamento devido a qualquer presidiário. Isto, contudo, só poderia advir de uma gigantesca reforma no sistema prisional, que não se faz da noite para o dia. Portanto, o tratamento que eles terão, hoje, é tão igual ao dos outros presidiários quanto os tratamentos do Sírio-Libanês são aos do SUS. São iguais, mas os governantes nunca se tratam pelo SUS, é sempre no Sírio-Libanês.

E a verdade é que, sem nenhuma ironia, não haveria justiça alguma em fazer com que os condenados do mensalão fossem postos em celas infectas e superlotadas, sujeitos a condições desumanas e cruéis, como é frequentemente o caso no Brasil. Não há justiça em fazer com que qualquer pessoa passe por isso. No caso deles, egressos de um ambiente social completamente diverso, a tortura mental e emocional seria insuportável, com consequências imprevisíveis e irreparáveis. Não creio que nem os que lhes tenham aversão absoluta desejem essa abominação. A discussão pode prosseguir, mas, no caso, parece possível alegar que, sem um mínimo de privilégio, a justiça não será servida. Deve ser mais um dos famosos paradoxos da realidade nacional, que me dão, no dizer sempre lembrado de Cuiuba, um destroncamento na ideia.

Minha vontade, portanto, era parar de ler, conversar e escrever sobre o mensalão, mas não esperava que outros acontecimentos historicamente marcantes me fossem evidenciados como foram. Quem me abriu os olhos foi o comandante Borges, que apeou sorridente de sua bicicleta elétrica de última geração, brandindo recortes de jornais e revistas. No começo, tive um sobressalto, com medo de que ele fosse defender a guilhotina contra os sentenciados. Mas não era nada disso, como pude logo constatar, quando ele, num gesto de espadachim, abriu sobre a mesa um dos recortes, onde se estampava a foto de uma mulher muito bonita, em nu frontal.

— É esta! — bradou o comandante. — Eu trouxe a entrevista dela! Entrevista sensacional! Está acabando essa loucura das mulheres, ainda há grandes mulheres neste mundo, a Britney Spears aderiu, a Julia Roberts aderiu, eles estão de volta, ele está de volta, o isósceles mágico está de volta!

A moça nua dá uma entrevista enérgica pela liberdade feminina. Nada contra os cuidados de beleza, mas ela, além da pele, dos cabelos, das unhas, das sobrancelhas e de tanta coisa que lhe tomava um tempo enorme, não aguentava mais também ter de atentar à área pubiana, preocupar-se com depilações e raspagens, saber de modas e estilos e dedicar horas a isso — chega dessa tirania insuportável, viva a liberdade! Não é mais moderno fazer depilação pubiana, é submissão a normas alheias à expressão feminina, é alienação!

— Eu escrevi aqui e vou botar no blog de um amigo meu — falou o comandante, passando à leitura exaltada de uns papéis que tirou do bolso. — Várias pensadoras concluíram que as mulheres estavam destruindo irresponsavelmente um símbolo poderoso, que perpassa as eras e representa a força e o fascínio femininos, estandarte da própria identidade femeal: o sinal de que a mulher substituiu a criança, o triângulo isósceles da fêmea eterna, fulcro e refúgio, mistério e aconchego, provocação e recato! Nada dessa indecência, uma parecendo o queixo do Robert Mitchum, outra lembrando Hitler, outra igual às costeletas do imperador, outra em forma de coraçãozinho, não se pode coonestar o deboche para com os signos sagrados da espécie humana! Estamos vivendo um grande momento na História do Brasil: a Restauração! É porque você não tem coragem de escrever isto para os jornais, nem eles de publicar, mas você devia fazer um apelo a nossas compatriotas de todas as idades…

— Engraçado, eu pensei que sua preocupação era com o mensalão.

— Mensalão? O mensalão passa, a mulher fica! O isósceles reluz soberano, no fim da trilha de penugem macia que em curva suave desce do umbigo da mulher admirada. Sem poder desviar o olhar enfeitiçado, o homem…

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Sabemos todos que a História muda segundo quem a observa. Para os contemporâneos dos fatos, a importância que lhes é dada frequentemente é bem distinta da que terá dentro de poucas décadas. O que era invisível aparece, o que não tinha importância a adquire, o que era básico se torna acessório, quem era tratado como gênio ou esperança nem mais é lembrado. E o anedotário de todos os povos armazena uma fartura de previsões hoje estapafúrdias, vaticínios que se demonstraram asneiras descomunais, afirmações definitivas cuja validade mal chegou a aniversariar.

Mas isto não impede que continue irresistível a tentação de dar palpites sobre o chamado veredito da História, é uma espécie de jogo que pode até ser divertido, assim para um domingo ocioso, sem nada melhor para fazer.

Não creio que nós, os contemporâneos do mensalão, estejamos, no geral, enganados quanto à importância histórica do julgamento. Até apostas estão sendo resolvidas pelo Brasil afora, porque houve muitos que empenharam um dinheirinho na convicção de que não viria cadeia para nenhum dos réus engravatados e influentes. Nada realmente autorizava a crer que fosse acontecer algo de muito diferente do que acontece desde o tempo do Marquês de Pombal. Até alguns ministros do Supremo Tribunal Federal eram, ou são, considerados comprometidos com o partido no poder e muito se comentou que, no caso do ministro Joaquim Barbosa, sua nomeação foi tencionada para resultar no mesmo tipo, digamos, de apoio — só que, neste caso, como dizia meu amigo Cuiuba, alguém tomaram um bonde errado.

Em outros contextos, o assunto já estaria morrendo. O julgamento engasgou bastante, rateou várias vezes e suscitou um número espantoso de besteiras e bravatas, mas acabou chegando ao fim, depois de anos de doloroso trabalho de parto. Pronto, assunto encerrado, sentenças em cumprimento, está na hora de cuidar de outras coisas, nossos problemas são bem mais graves e não cabe ficar falando mais em presidiários, já acabou. Só que, como temos visto, não acabou. Os condenados, que insistem em ser considerados presos políticos, também mobilizam apoio para a tese de que são inocentes e vítimas de uma espécie de golpe e de instituições que se perverteram para destruí-los.

Qualquer presidiário, em qualquer tempo e de qualquer natureza, invariavelmente se declara inocente, direito garantido pela liberdade de expressão. Mas a avaliação que os presos do mensalão fazem de seu papel nesses acontecimentos para mim será inteiramente diversa, dentro de pouco tempo. Eles de fato são, como quase chegam a pintar-se, mártires da democracia — e eu acrescentaria do progresso —, mas não no sentido de que foram atingidos por grupos (?) que manipularam as instituições democráticas para levá-los ao cárcere, tratando-se, pois, de uma falsa democracia, que precisa ser reformulada.

Eles são mártires da democracia, do progresso e — de novo faço um acréscimo — da igualdade, porque, através de seu suplício, demonstra-se, finalmente na prática e não no gogó — que figurão poderoso da elite governante ou financeira também pode ir para a cadeia, banqueiro importante também pode e pode até ser fugido do xadrez como qualquer ladrão de galinha, mulher rica pode, deputado pode, qualquer um pode. Este é um compromisso das instituições que agora ultrapassa o palavreado gongórico das leis que exaltam a soberania popular, em direção à realidade compreensível por qualquer um. Os governantes atualmente no poder não deviam agir tão compungida ou petulantemente, diante do cumprimento das sentenças; deviam vangloriar-se e mostrar ao mundo que agem conforme o que professam.

São mártires da democracia, do progresso, da igualdade e — lá vai novo acréscimo — da educação, porque, logo nos primeiros dias de cadeia, provocaram esclarecimentos envolvendo direitos dos cidadãos. Tratados, sem razão ou embasamento jurídico, de forma privilegiada em relação a outros presos, na questão das visitas, logo tiveram de ingressar, por pressão dos discriminados noticiada pela imprensa, no mesmo regime que os demais. Outros privilégios foram, ou serão certamente coibidos. Na cadeia, o único doutor deve ser o diretor da enfermaria. Tudo igualitário e educativo, exatamente o que eles sempre defenderam politicamente, mas nunca conseguiram implantar pelos métodos que tentaram, notadamente o de comprar adesões e agir como se a coisa pública devesse ser de quem consegue gastar mais dinheiro — o que talvez seja uma verdade cínica, mas deve ser rejeitada pela boa consciência e não pode constituir a forma de agir do governante. Indo para a cadeia, fizeram muito mais para a consecução dos ideais e objetivos proclamados que quando em liberdade.

Através desse martírio, chama-se também a atenção para problemas talvez menores, que de vez em quando ocupam um governante ou outro, mas jamais de forma decisiva ou que leve a uma ação eficaz. Um deles é a situação dos presídios e cadeias. Que vergonha seria para a famosa imagem nacional, se aparecesse em alguma revista ou tevê americana um ex-dignitário brasileiro confinado numa cela junto com mais oito condenados, um cano de água fria saindo da parede, um vaso sem tampa e demais componentes talvez da maior parte das celas brasileiras. O espetáculo das duas senhoras condenadas expostas a vexames também é uma visão vergonhosa, deprimente e lamentável. Sempre foi assim, mas não se notava com muita clareza, cabendo aqui, mais uma vez, a venerável observação de que no dos outros é refresco. Agora que o dos outros pode vir a ser o nosso, teremos mudanças. Estes são os grandes legados dos mártires, os que nosso futuro guardará. Se não guardar, vai dar-se mal.

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Uma vez uma repórter me entrevistou para uma matéria, que não sei nem se saiu, sobre a esquisitíssima variedade de gente, à qual pertenço, que não tem celular. Acho que ela foi embora sem se conformar. Os meninos do futuro próximo, claro, receberão implantes de chips de celulares e terão seus cérebros conectados ao wi-fi municipal, serviço obrigatório para qualquer prefeitura. Diante desta perspectiva, é normal que, num mundo em que, cada vez mais, as pessoas se tornam apêndices de seus i-phones, tablets, óculos Google e similares, a moça estranhe um maluco que persiste em não ter celular. Pelo menos eu lhe devia fornecer alguma explicação ideológica ou psicológica, tais como pertencer a um aguerrido grupo de budistas ativistas e ter delírio de perseguição ou fobia por qualquer novidade eletrônica.

Que eu saiba, não é nada disso. Não tenho raiva nenhuma de aparelhos eletrônicos, trabalho no computador até com certa proficiência e fui um dos primeiros escritores brasileiros a usar um processador de texto, no tempo em que nem internet havia e um HD de um (sic) megabyte, chamado de “winchester”, era considerado uma extravagância de milionários americanos e talvez mentira de viajantes. De fato, nunca fui muito de falar ao telefone e pode ser que tenha uns dois traumas de infância. O telefone da família, quando moramos em Aracaju, ficava no corredor de nosso casarão, ocupando bastante espaço. O aparelho era uma grande caixa preta com manivela e, embaixo, duas pilhas dessas de lanterna, só que enormes. Eu achava que aquilo ia explodir e preferia evitar usar o telefone. Minha mãe, que era baiana (em Salvador, nessa época, já havia telefones automáticos de quatro números!), adorava.

— Alô! Meia-três-um! — cantarolava ela, atendendo a uma chamada e dando o nosso número.

— Ih, lá vai mamãe — pensava eu, aguardando a explosão.

É possível, mas, de uns tempos para cá, olhando em torno, me convenci de que a razão para eu não querer celular é que, até hoje, nunca precisei, mas tenho certeza de que, no dia em que tiver um, não vou conseguir passar sem ele dentro de poucos dias. Daí para ingressar sem retorno num mundo — este, sim, muito louco — a que me recuso a pertencer, o mundo dos viciados e dependentes dos celulares, é um passo a que não quero arriscar-me. Acho que a gente nem nota mais as maluquices que esse negócio gerou, desde a obsessão em conhecer cada um dos milhares de aplicativos oferecidos e em ver sempre que mais está sendo oferecido e que perspectivas se abrem nesse cipoal infinito, à consolidação do que parece se delinear no futuro, a Era da Promiscuidade. Acabou-se a intimidade, até o recato e o pudor são valores do passado, e o celular deixa isto muito visível, se não for um dos responsáveis principais.

No tempo do telefone fixo, procurava-se uma certa discrição, quando, mesmo em casa, se conversava sobre um assunto íntimo ou sigiloso. Mas o celular acabou com isso e hoje, em elevadores, salas de espera, filas, ônibus, corredores de avião ou onde mais se aglomere gente, partilhamos de segredos e confidências antes mantidos a sete chaves. Isso, no Brasil, é ainda agravado por conexões péssimas, que obrigam os interlocutores a gritar. Como na história (mudo os nomes, claro) do Maurício, amante de uma jovem senhora sentada quase a meu lado, na sala de espera do oculista. Maurício um patente sem-vergonha, que não somente falhara em sua promessa de largar a mulher, Aninha, para viver com Eunice (a jovem amante), como paquerara com sucesso a irmã mais nova de Eunice, a Clarice, aquela traíra de carinha inocente, o que tinha de lourinha, tinha de falsa, procurando o homem da irmã até no escritório. A reprovação da conduta solerte de Maurício e a solidariedade geral podiam ser sentidas quase palpavelmente, pelo menos em todo o público feminino da plateia. Entre os homens, creio ter percebido em alguns um traçozinho de inveja do Maurício. Daqui a pouco, esse tipo de coisa se estende a todo convívio social e a promiscuidade passa a ser normal, ou até mesmo esperada.

À mesa dos botecos, por vezes quase sem fôlego, alguns tripulam simultaneamente dois ou três celulares, ou um celular e um tablet. Um problemazinho encontrado reflete-se em suas feições, subitamente crispadas e ansiosas, quase em pânico. Franzem o rosto, mordem os lábios, movimentam freneticamente os dedos pela tela e, afinal, uma luz ilumina seu rosto, fim do tormento: ele está em linha, afinal, não fora do ar, como temia. Outro dia, num aeroporto, uma moça, por sinal muito bonitinha, sentou-se à minha frente e passou a falar no celular, sem levar o aparelho ao ouvido, mas conversando como se estivesse diante de uma pessoa. Falava, falava e, quando desligava, imediatamente fazia nova ligação. Nas poucas vezes em que não conseguiu completar alguma e teve que ficar sem falar por um minuto ou dois, dava para ver sua angústia, parecia que ia perder o fôlego ou se atirar lá embaixo, devia ser insuportável, coitadinha.

E tudo o que se faz agora é fotografado, gravado ou filmado. Não bastam as câmeras de segurança que daqui a pouco estarão em toda parte. Os celulares não perdoam nada e, mesmo à distância, podem documentar o que alguém pense que está fazendo sem que ninguém veja ou saiba. Por certas conversas que eu tenho ouvido, também já fazem parte do equipamento sexual auxiliar — ou mesmo propulsor, quem sabe — de alguns. Antigamente, fazer certas fotos ou, pior ainda, filmes, era difícil, tinha-se que usar uma Polaroid ou coisa assim. Hoje a alta definição está ao alcance de todos e esse documentarismo peralta entrou em voga, é uma curtição especial. Claro, vai tudo parar na internet, é isso mesmo, é o futuro. No futuro, só existirá a internet.

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