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Archive for the ‘Ruy Castro’ Category

A cidade é deles – Ruy Castro

Outro dia, pelo calçadão do Arpoador, vinham dois “black blocs” no rigor dos trinques: coturno, calças, mochila, camiseta e jaqueta pretos, e moletom com touca idem enrolado à cabeça, deixando apenas os olhos de fora –uma espécie de burca militar, como já se disse aqui. Imagino que trouxessem consigo os adereços de mão próprios da categoria: álcool, vinagre, pedras, molotovs e máscaras contra gases –todo cuidado é pouco quando se tem a lei pela frente.

Mas não havia lei à vista, nem roupa mais imprópria para um “footing” àquela hora –três da tarde, com um sol de veranico sob o qual a dupla suava e parecia apenas exótica, não ameaçadora. Bem faz o Batman, que só sai à noite para trabalhar –sabe que, à luz do dia, sua roupa de morcego tem algo de ridícula. Por sinal, a fantasia dos “black blocs” é a mais próxima que eles acharam para substituir a de Batman –que, tudo indica, usavam até há pouco.

BlackBloc

Nossas cidades não têm opções para se trocar de roupa em público. Donde os dois devem ter saído de casa já paramentados e cruzado no prédio com seus vizinhos e porteiros –que os conhecem desde crianças e sabem muito bem quem são. Bem provável que morassem na Vieira Souto (com os pais, naturalmente) e estivessem a caminho do acampamento armado pelos meninos do “Ocupa Delfim”, no Leblon.

O fato de saírem fantasiados às ruas e com a maior naturalidade sugere que estamos nos habituando aos “black blocs”. E por que não? A cidade é deles. A noite cai e a função começa. Do Leblon, seguem para o largo do Machado, onde quebram o que encontram pela frente. Destroem metade de Laranjeiras e, de lá, vão para o Castelo, a Cinelândia ou a Lapa, onde o rastro da depredação continua.

Hoje, já não passam de 200. Mas são suficientes para subjugar os demais 5.999.800 com que convivem.

FOLHA DE SP – 30/08

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Por sujar a rua – Ruy Castro

A Prefeitura do Rio está lançando a Operação Lixo Zero, que vai multar quem emporcalhar a cidade. Em primeira instância, a campanha é educativa. Equipes da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) estão percorrendo as ruas para flagrar maus cidadãos jogando coisas onde não devem e alertá-los para o que os espera. Em breve, com guardas municipais, policiais militares e 600 fiscais em ação, as multas começarão a chegar para quem tratar a via pública como a casa da sogra.

Uma guimba jogada ao chão custará R$ 157. Chicletes, latas de refrigerante, garrafas PET, sacos e copos plásticos, idem por item despejado. Há pessoas que põem na rua ou deixam para trás sofás, pneus, até carros. Um metro cúbico de lixo abandonado custará R$ 375. Acima disso, R$ 3.000. Abordado pela autoridade, o sujismundo terá de informar seu CPF. Se se recusar, será levado ao delega. Num mundo ideal, as pessoas deixarão também de cuspir no chão.

Imagina-se que, quando essa lei começar para valer, os recordistas de multas serão os cerca de 300 jovens golpistas que, nas últimas semanas, se habituaram a tomar as ruas, pichar monumentos, vandalizar prédios públicos, quebrar orelhões, arrancar postes, apedrejar vitrines, depredar bancos, saquear lojas e, por uma estranha compulsão, destruir lixeiras, jogar o lixo no asfalto e armar barricadas de fogo com ele.

É verdade que, no seu “bullying” político, digno do fascismo, eles não estão nem aí para a cidade, que é de todos e que, por algum motivo, parecem querer levar ao colapso.

Pois, já que a lei não permite prendê-los por vandalismo, saque, formação de quadrilha, desacato à autoridade, resistência à prisão e nem mesmo por ataque aos órgãos públicos, talvez seja possível enquadrá-los por sujar a rua. Não prenderam Al Capone por sonegar impostos?

FOLHA DE SÃO PAULO

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Irrealismos – Ruy Castro

Nos filmes da Hollywood clássica (leia-se, do cinema surdo a, no máximo, 1965), ninguém trancava a porta do carro ao estacionar. Aliás, era tranquilo estacionar. Não se sabe por quê, todo mundo entrava ou saía do carro pelo lado do motorista. E, se o sujeito tinha de pagar o táxi, já tirava do bolso o dinheiro certo, sem olhar, e nunca esperava o troco.

Idem quanto à conta do restaurante ou do bar -era só deixar o dinheiro na mesa ou no balcão, e sair. Moeda para dar gorjeta ou para falar ao telefone não era problema -bastava enfiar a mão no bolso. Era também do bolso (do paletó, de preferência) que saía o cigarro -solto, avulso-, não de um maço ou cigarreira. O fósforo era aceso na sola do sapato ou na parede. E fumar consistia em acender o cigarro, dar uma tragada, lembrar-se de algo urgente e jogar o cigarro fora.

Mesma coisa, comer. O personagem sentava-se à mesa, punha o guardanapo no colo, dava uma garfada, e um importante compromisso obrigava-o a levantar-se e sair correndo. Fazer a barba, também. O galã ensaboava o rosto, aplicava a navalha uma ou duas vezes e, por qualquer motivo, tinha de interromper. Limpava a espuma com a toalha e, ora, veja, já estava barbeado por baixo.

Outra cena clássica era a de bater no gancho do telefone para recuperar a linha. O sujeito estava falando e a ligação era cortada. Dava, então, várias pancadinhas no gancho. Mas a linha nunca voltava. E este era o único traço de realismo naqueles filmes em que as mulheres, mesmo depois de ir para a cama sofrendo e chorando, acordavam prontas, maquiadas e lindas.

Em Brasília, também é assim. Depois de ir para a cama rindo, feliz e exultante, qualquer político importante, mesmo acusado de grossas e cabeludas falcatruas que constrangem a nação e abalam o equilíbrio político, continua acordando rindo, feliz e exultante.

Publicado na Folha de São Paulo

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Lendo com um olho só – Ruy Castro

Fui escrever outro dia que o IBGE ainda não tinha me recenseado este ano – ou em qualquer ano nos últimos cinco censos -, e o inevitável aconteceu: fui recenseado. Assim, deixei de ser uma não entidade estatística, não que isto tenha me traumatizado ou levado ao divã, e já posso dizer que faço parte dos 180 milhões e bolinha da população brasileira.

O melhor foi saber que a honra da visita do IBGE não se deveu ao fato de eu ter escrito a respeito neste espaço, mas ao de que todo o meu prédio no Leblon foi incluído no rol das visitas do recenseador. A qual se deu numa radiosa manhã da semana passada, em que eu estava em forma e com todos os neurônios em alerta, prontos para as mais percucientes perguntas.

Na minha inexperiência em censos, imaginei que o IBGE quisesse conhecer o recheio de meu apartamento -quantos aparelhos de TV, quantos aposentos com ar condicionado, quantos discos de Doris Monteiro e Roberto Silva, quantos gatos. Em minha opinião, eram perguntas importantes para se aferir o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do povo brasileiro.

Mas não houve nada disso. Fui sorteado para responder ao questionário simples, cujas perguntas eram respondidas (“Tem luz elétrica? Tem água corrente no banheiro? Está ligado à rede de esgoto?”) a uma simples espiada ao redor pelo entrevistador. A única que me embatucou foi: “Sabe ler e escrever?” -porque, por mais que viva dessas atividades, sinto que elas andam me escapando ultimamente.

Ler, por exemplo. Ao ler as declarações de nossos presidenciáveis, tenho de fazer um esforço intelectual para adequá-las a suas biografias ou mesmo ao que disseram na véspera. E escrever torna-se a cada dia mais perigoso porque corre-se o risco de não ser entendido pelos que, nos dois lados, em momentos como o atual, preferem ler tudo com um olho só.

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Carnaval no fogo – Ruy Castro

Capítulo I – Trecho

“Em todos os tempos, para quem vem de avião ou navio, a chegada ao Rio costuma ser tão espetacular que provoca essas alterações na percepção. Já devia ser assim no verão de 1502, quando uma esquadra portuguesa, comandada por Gonçalo Coelho, adentrou pela primeira vez a baía de Guanabara. (mais…)

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