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Archive for the ‘João Ubaldo – 2003’ Category

Tenho relutado muito em aceitar a dura realidade, convicção da própria família. Na opinião de todos os que sequer mal ouviram falar em mim, quanto mais dos que conheço de perto, eu não trabalho. Está aqui, fanada e marronzinha, vítima dos tempos, minha primeira e única carteira do Ministério do Trabalho. A cara de fato não faz inspirar muita fé nem na minha diligência nem na minha inteligência, embora eu não tivesse bigode na época, o que me acrescenta hoje, na foto do passaporte, um pouco a aparência de contrabandista de maconha ou seqüestrador de avião, que podem não ser ofícios lícitos, mas pelo menos são trabalho, imagino eu.

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Quem está aí? – João Ubaldo Ribeiro

Em uma coisa a maioria das pessoas com quem converso concorda: o presidente Lula continua cada vez mais simpático, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida senão presidenciar. Num momento está jogando futebol, como o peladeiro que quase todos os brasileiros foram ou são — e com pinta de meio ruim de bola, como também a maior parte dos outros peladeiros. Em outro momento, recebe visitantes com informalidade e alegria, enfia bonés na cabeça (um deles meio controvertido, mas já passou), finge que toca violino, quase faz ginástica olímpica, sai circulando com uma câmara na mão e, embora haja quem ache (eu não) que ele não tem a correspondente idéia na cabeça, se mostra uma figura boa-praça, amigueira, bonachona, que abraça todo mundo e tem palavras de amizade e estímulo para quem aparecer. Além disso, não faz vergonha no exterior, antes pelo contrário. Não discursa colonizadamente em várias línguas e não tem o ar meio rabo-entre-as-pernas que brasileiros cultos por vezes assumem, diante de representantes de países avançados.

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Como o tempo voa, hem? Brincando, brincando, já estamos no quinto dia de 2003, e já devemos ter sido contemporâneos de incontáveis novidades, tais como a primeira desinfecção contra gente de que se tem notícia, realizada, segundo propósito anunciado pelo Primeiro Damo do Rio de Janeiro, dr. Garotinho, no Palácio das Laranjeiras. Claro que a ordem não terá emanado diretamente dele, pois o governador não é mais ele, mas, como sabemos, por trás de cada grande mulher há sempre um grande homem. Por conseguinte, ele terá sabido, com aquele jeitinho inocente e de quem não quer nada, costumeiro nos homens das grandes mulheres, lembrar à dra. Rosinha (para quem pense que estou tentando pirraçar a governadora, chamando-a de “dra.”, lembro que faço isso com todo mundo que é importante, seguindo a tradição de nosso povo, que me compete, como artista, ajudar a preservar; aqui, foi importante ou teve pose de importante, é logo “doutor”; só estou me guiando, como é meu dever, pela voz do povo), lembrar à dra. Rosinha, dizia eu, cuidar da desinfecção.

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Novidades ornitológicas – João Ubaldo Ribeiro

Todo mundo sabe que Itaparica sempre esteve na vanguarda brasileira do pensamento e da ação, desde a ocasião em que corremos os holandeses daqui para fora debaixo de cacete, em 1648, conforme o testemunho ocular de Roxo Lírio e de Vavá Paparrão, hoje ambos finados, sendo que Vavá chegou a enfrentar pessoalmente os holandeses, na companhia de Santo Antônio, então oficial da Marinha portuguesa, se não me engano no posto de capitão. Repilo os invejosos que, na tentativa de nos empanar o brilho duramente conquistado, dizem que contemporâneos nossos, como Roxinho e Vavá, não poderiam estar presentes em ocasião tão remota no tempo. Esquecem-se esses maledicentes de que se tratava de outras encarnações e de que os holandeses não sabiam capoeira, arte de luta eximiamente dominada por Vavá e ensinada ao santo em apenas duas horas, pois santo costuma ser muito rápido no aprendizado.

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A banana ameaçada – João Ubaldo Ribeiro

É óbvio que Itaparica, embora sempre azafamada em seus próprios problemas, tais como saber se a maré enche ou vaza, acompanha de perto as questões nacionais e internacionais. Não temos perdido de vista, por exemplo, toda a embaraçosa série de acontecimentos no governo do Rio de Janeiro, envolvendo alegações de furto do dinheiro público. Contudo, não estamos muito apreensivos quanto a isso, porque sabemos que, como de costume e tradição, os eventuais culpados serão exemplarmente punidos e tudo o que surrupiaram voltará aos cofres públicos. Não é à toa que o governador Garotinho — perdão, a governadora Rosinha, volta e meia essas coisas do Sul do país confundem a gente — já fez e aconteceu e não cedeu ao primeiro impulso, que foi o de botar a culpa na sua antecessora. Não, não, trata-se, é claro, de obra do demônio e requererá pelo menos uns trinta pastores em uníssono para o competente exorcismo.

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Aqui em Itaparica, sempre fomos, como em tantos outros campos, muito bons em questões de fantasmas e almas penadas em geral. Recordo com muita saudade minha tia-avó Emília, que veio morar aqui em casa quando isto cá ainda era meio casa-grande e que lutava com notável bravura contra os fantasmas dos holandeses. Parece que os holandeses não se conformavam em terem sido escorraçados da ilha em 1648 e, a cada oportunidade, tentavam voltar para propagar suas heresias e promover geral esculhambação, como é do feitio deles. Minha avó Emília não admitia e aí a gente acordava no meio da noite, com ela vermelhinha, esbaforida e exaltada, depois de repelir energicamente tentativas holandesas de novamente assaltar a ilha e cometer as algozarias pelas quais ficaram tristemente famosos entre nós.

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De volta à real – João Ubaldo Ribeiro

Relutantemente, lembro que está na hora de deixar Itaparica. Neste domingo, já deverei encontrar-me de volta ao batente de sempre. Há uma melancolia irônica nisso, porque o paraíso terrestre só se alcança por tempo limitado. Como o casamento, de que já se disse ser igual a uma gaiola: o passarinho que está fora quer entrar, o que está dentro quer sair. É verdade e suponho que tem mesmo a ver com a natureza humana. Meu truque, em relação à ilha, é demorar o bastante para, ao deixá-la, ainda querer ficar. Assim preservo as saudades e o encanto do que revivi, nesses dias tão breves que acabo de passar. Não posso permanecer o resto da vida apenas assistindo às festas que, nesta época do ano, aqui parecem acontecer todos os dias, conversando e espiando os passarinhos, batendo papo com meus fantasmas e sendo docemente irresponsável, como se nada mais no mundo tivesse importância.

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