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Archive for the ‘J. Carino’ Category

Entrevista com Papai Noel – J. Carino

– Tudo bem, Papai Noel?
– Tudo bem, mas cansado.
– É, a Lapônia é longe, e o transporte de trenó voador não é nenhuma primeira classe…
– Não, o cansaço físico não me atinge. O problema é o cansaço mental, e certo desencanto.
– Como assim?
– Ora, meu caro entrevistador, como você sabe, faço esse meu papel há muito tempo. Sempre esperei que o desamor, a mentira, a desonestidade, a insensibilidade – sobretudo para com os mais fracos – decaíssem, sendo substituí dos por seus opostos. Mas vejo, cada dia mais, crescerem tais ervas daninhas no jardim terrestre, cultivado com tanto carinho por minha colega Natureza, bem como por poucos e abnegados seres humanos…
– Mas, Papai Noel, as crianças ainda acreditam…

Carino– Ah, as crianças… Justamente elas são as criaturas mais atingidas. Vê-las sofrendo com fome, maus-tratos, doenças, pedofilia, e agora o que chamam de bullying, me tira do sério, me irrita, e me leva às lágrimas.
– Porém, Papai Noel continua existindo e levando presentes às crianças.
– Presentes materiais, meu caro. No entanto, cuidados, atenção, calor humano, harmonia familiar, coisas assim, inefáveis mas imprescindíveis, não se vendem nos shoppings, nas lojas de rua… Nem nos camelôs. Ho, ho, ho!
– Mas a tecnologia…
– É ótima, meu caro entrevistador, desde que cada iPod, iPhone, tablet, game, tevezona e outros babilaques, venham embrulhados no fino papel de seda do amor, do carinho, da atenção. E não é bem isso que se vê, num mundo dividido pelas guerras, pelo ódio, encharcado de corrupção…
– O senhor me parece bastante desencantado mesmo, talvez deprimido.
– Não, meu caro. Embora às vezes o desencanto me assalte – como a qualquer um – ele é passageiro. Sabe por que, meu prezado entrevistador?
– Por que, Papai Noel?
– Porque sou feito de sonho. Como uma árvore de Natal, eu também me acendo quando sou tocado pelo espírito do Natal. Então, renasço, revigorado e pronto para fazer meu duro, estafante porém maravilhoso trabalho, com alegria, até porque é assim que recebo meu invejável presente.
– Que presente, Papai Noel?
– Uma coisa chamada “sorriso de criança”. Nas casas pobres ou ricas; nos hospitais e orfanatos, nos acampamentos de refugiados, e mesmo dentro das barrigas de mães que vão repetir o milagre da maternidade, lá estão esses sorrisos me esperando. Então, caro entrevistador, eu é que sou o mais presenteado. Eu e qualquer pessoa que se disponha a se tornar um Papai Noel ou u´a Mamãe Noel. Você tem filhos, meu prezado entrevistador?
– Tenho, Papai Noel, porém não são mais crianças, são dois homens feitos, o Felipe e o Miguel.
– Engana-se, gentil repórter. Eles continuam sendo crianças. Na Noite de Natal, repare o brilho no fundo dos olhos deles. Aquelas chamas da esperança, do afeto, da criatividade e sobretudo da renovação estão lá, acesas pelo “toque de Papai Noel” que qualquer um pode dar. Esse é, sempre, sempre, o melhor presente.
– Obrigado, Papai Noel, pela entrevista.
– Eu é que agradeço, gentil repórter. A despeito das vicissitudes, um bom Natal e um Ano Novo feliz. Vamos lá, renas queridas… Ho, ho, ho, ho!

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A arte de agradecer

Nos dias que correm, a arte de agradecer está desaparecendo em meio à confusão comunicativa. A simplicidade, a beleza e o som gostoso de um “obrigado” estão cada vez mais difíceis de se encontrar.

A vida corre; a luta pela sobrevivência é intensa; a praticidade se impõe. Tudo isso faz com que os pequenos gestos de atenção, de gentileza, fiquem esquecidos. Entre eles, as manifestações de agradecimento.

Sim, agradecer é uma arte. Quando se agradece, não basta a simples repetição mecânica de palavras; é necessário que elas contenham o brilho da sinceridade e o calor da verdade de quem agradece.

Essa arte é feita, inclusive, de sutilezas e de delicadeza. O agradecimento não pode soar como uma obrigação; não pode também conter a arrogância dos que agradecem a contragosto. Agradecer é como pintar ou esculpir: a alma de quem faz deve misturar-se ao gesto de fazer. O resultado precisa conter a beleza integral dessa manifestação de atenção.

Já reparou, caro leitor, como um simples “obrigado” é algo poderoso? Muitas vezes, em meio à tensão de um contato malsucedido, ou mesmo quando se percebe que o desentendimento vai descambar para uma discussão, essa palavra mágica  desarma espíritos e dissolve resistências.

Manifestar agradecimento também honra e enobrece aqueles a quem agradecemos. É o caso típico dos que nos prestam serviços – como balconistas, garçons, porteiros, motoristas de ônibus ou de táxi -, a quem muitos não agradecem, seja por distração, seja por acharem que não fazem mais do que sua obrigação ao nos atenderem bem. E sem dúvida um “muito obrigado”, dito com calor e sinceridade, pode salvar o dia de alguém que já pode estar se considerando humilhado, mal remunerado ou injustiçado em seu trabalho.

Interessante é lembrar que, embora a gente nem sempre exercite a arte de agradecer, desejamos receber agradecimentos. Muitas vezes nos enfurecemos quando não recebemos pelo menos uma palavra de agradecimento. Nossa idéia mais típica é julgar que aí existe uma ingratidão em relação ao que fizemos.

Preocupa-me sobremaneira observar que a arte do agradecimento não está sendo passada como antes às novas gerações. Crianças – pessoas em formação – não nascem sabendo agradecer; precisam ser ensinadas; necessitam aprender essa arte, como as demais regras de civilidade e gentileza sem as quais jamais se tornarão integralmente humanas. Adultos têm o inelutável dever de passar a esses seres novos que entram no mundo o que esse mundo contém, de mau ou de bom, inclusive as manifestações básicas de conduta harmoniosa na convivência com os outros, entre elas a arte de agradecer.

Assusta-me igualmente ver entre os jovens essa ausência contumaz de agradecimentos. Quero crer que lhes parece “caretice” dizer um “obrigado”. Ou talvez seja simples falta de tempo, ou ainda um dos frutos da confusão comunicativa a que me referi no início desta crônica.

Agradecer é doar-se em sinceridade a outrem; é reconhecer-lhe a importância; é testar a própria humildade; é manifestar a boa educação – condição que também parece estar se dissolvendo em meio à brutalidade e à ignorância cada vez mais generalizadas.

Receber alguma coisa – uma mensagem, um presente, um bom serviço, ou um simples gesto de atenção – é muito bom. Porém, melhor ainda é usufruir dos resultados da arte de agradecer. Quando superamos nossas resistências, às vezes até motivadas pela timidez, vemos o quanto é gostoso agradecer, geralmente vendo refletida nos olhos daqueles a quem agradecemos a importância de nosso gesto de agradecimento.

Que bom será se pudermos continuar cultivando a arte de agradecer.

E eu, prezado leitor, agradeço, do fundo do coração, seu carinho e  generosidade de ler o que escrevo. Obrigado mesmo!

 

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Caminhão de mudança

Hoje, os caminhões de mudança são imensos veículos que, de uma vez só, engolem todas as tralhas numa mudança. Além disso, são fechados, impenetráveis, escondendo tudo o que uma mudança é, sobretudo sua realidade mais essencial: a vida de uma família movendo-se, desenraizando-se e criando raízes noutro lugar.

Antigamente, a mudança, além de carregar, expunha completamente os objetos da família, tornando a carroceria uma espécie de triste pedestal, que exibia os trastes, desde que saíam de uma casa até que chegavam à outra. Era o desfile que punha à mostra as entranhas de quem se mudava.

Hoje, as empresas transportadoras se encarregam de tudo: empacotamento das coisas, carregamento do caminhão, transporte, descarregamento e desembalagem. No passado não era assim.

Mudança era um acontecimento, que começava muito antes do dia em que chegava o caminhão. Depois que a mudança era decidida, começava o longo ritual de despedida – quase sempre um sofrimento, por exigir o desapego em relação aos amigos, à casa, ao quintal, que quase sempre havia. Sofria-se porque mudar de casa era romper com o lugar habitual para encontrar o lugar desconhecido, uma incerteza.

A mudança em si era um alvoroço. Os amigos muitas vezes disfarçavam a pura curiosidade ajudando a carregar os objetos. Até acontecia de herdarem um pneu de bicicleta em bom estado, uma barraca de praia surrada, coisas assim. As amigas da dona da casa geralmente ganhavam os vasos de planta que não caberiam no quintal da nova moradia. Isto, aliás, se tornou quase sempre obrigatório quando os novos endereços passaram a ser os apartamentos, sem o espaço tão poético e essencialmente existencial dos quintais com seus jardins.

Os carregadores eram simplesmente sujeitos musculosos, e nada cuidadosos. Tinham o cuidado de um elefante numa loja de louças. Era necessário vigiar permanentemente, e gritar alertando, sob pena de aquele sofá ficar sem um dos pés ao bater no portão de saída, ou o estrado da cama ser desmantelado quando ia de encontro a um portal por onde se tentava passar com ele.

A geladeira era um capítulo à parte nessa novela da mudança. Pesada, ruim de carregar, quase sempre exigia longas discussões e muita ginástica para que saísse da cozinha, passasse pelo corredor, até ganhar a rua. E, às vezes, a meio do caminho, aquele imenso monstrengo branco voltava, aos trancos e barrancos, para sair pela porta da área de serviço, seguindo pelo lado da casa até chegar ao caminhão.

Nas famílias mais pobres, a mudança era quase sempre feita num caminhão emprestado; os carregadores eram amigos que, além da consolidação da amizade, tinham como paga uma feijoada feita de véspera e saboreada, depois do suor e do cansaço, na moradia nova, onde a dona de casa fazia das tripas coração para servir todo mundo em meio às tralhas todas desarrumadas.

Muitas vezes, vi as leis da física serem contrariadas. Quem disse que dois ou mais corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço? Era raríssima a mudança em que se podia fazer mais de uma viagem. Portanto, era preciso que tudo coubesse no espaço limitado da carroceria do caminhão. Com isso, a arrumação inicial, tão bem feitinha, era aos poucos substituída por pilhas de trastes. Uma bacia vai ser posta ali sobre aquele colchão, no canto; o botijão de gás pode ir sobre o sofá; as gavetas devem ir cheias; as vassouras vão enfiadas por debaixo da mesa; os quadros vão imprensados atrás do guarda-roupa.

Desse jeito, tudo ia cabendo, tudo ia sendo posto no caminhão como dava. O resultado era uma incrível e constrangedora arrumação, onde até urinóis viajavam à vista!

Mudanças hoje são assépticas, arrumadas demais, com tudo ordenado e catalogado, o que facilita muito na hora da arrumação na nova casa. Mas, onde a graça da confusão? Onde o jogo que, nós, crianças, gostávamos de jogar? Pois eram um jogo aquelas tentativas de encontrar a concha que sumiu e acaba sendo encontrada, pelas artes da mudança, na gaveta do móvel da sala; ou um dos pés do sapato de ir à escola que desaparecia quase como cúmplice de nosso desejo de faltar às aulas no dia seguinte ao da mudança. Ainda mais porque quase sempre era uma escola nova, outro mundo desconhecido.

Muitas semanas depois, ainda havia diversão, quando as coisas julgadas desaparecidas para sempre surgiam nos lugares mais improváveis.

A própria exposição das entranhas da casa, essa exibição pública das coisas do lar, que dava aos vizinhos pretexto para comentários e fofocas, mesmo muito tempo depois que o caminhão da mudança virava a esquina, hoje não acontece mais. Mudar, agora, é uma operação planejada, um primor de logística, que não expõe, não envergonha… e não diverte.

Se você é desse tempo, caro leitor, feche os olhos e veja, com os olhos da alma, como tem poesia naquela caótica arrumação do caminhão de mudança que vai, balançando, balançando, e seguindo pelas ruas da lembrança.

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Em busca da tarde suburbana

Na tarde suburbana, eu passeava meu descompromisso, depois da manhã consumida no estudo.

O sol forte, ainda longe de ceder ao frescor da noite, exigia o abrigo dos ficus, árvores tão suburbanas quanto suburbanos sempre foram os pardais.

Havia sempre cães ladrando na tarde. Latidos roucos de cães supostamente ferozes, por detrás das cercas ou grades de jardins tranqüilos; latidos finos de cadelinhas covardes, que depois se transformavam em fêmeas parideiras, eternizando a linhagem dos vira-latas.

A fábrica apitava, um imperativo sonoro que marcava o fim do almoço e, no fim da tarde, a alforria do término de mais uma jornada de trabalho.

A rua de terra era esverdeada aqui ali pelo capim na beira de valas ou pela grama mais ou menos bem cuidada defronte das casas simples. Árvores frondosas, de galharia farta, como as mangueiras, também ofertavam folhagens verdes, além da generosa oferta de seus frutos, que eram a própria encarnação da delícia. Isto sem falar das goiabeiras, das jaqueiras, das tamarineiras…

Carros, havia tão poucos nessas ruas perdidas em bairros afastados, que sua passagem disparava a curiosidade, como hoje a massa de veículos provoca o medo.

A passarinhada também colaborava com a sinfonia da tarde, sobretudo quando a luz dourada – uma cor de ouro velho – da tarde ia enfraquecendo e cedendo lugar, devagarinho, ao lusco-fusco crepuscular. Quem não viu uma árvore suburbana coalhada de pássaros, numa incrível algazarra sonora, não viu um dos mais bonitos e simples espetáculos da natureza.

Vento da tarde, sabem todos os que tiveram infâncias felizes, é fundamental para que as pipas transformem o céu suburbano num mural de cores sobre um fundo azul.

Lembro de minhas tardes suburbanas como um pulsar de vida. Não da vida frenética das manhãs, que parecem sempre cheias de energia, responsáveis pelos impulso que garantirá toda a operosidade do dia. Esse pulsar das tardes sempre me pareceram sintonizados com a calma, afeiçoados ao descanso, numa redução de ritmos talvez destinada a fazer a transição para a instauração da alma criativa, meditativa, ou então festeira, da noite.

No verão, o estio permitia os passeios; no inverno, induzia ao recolhimento, à contemplação da rua, vista das janelas, o que também acontecia nas tardes chuvosas.

Padarias e tarde parecem fazer parte de um complô destinado a despertar aquela vontade irresistível de combinar um café gostoso com um pão quentinho. E isto também nada tem a ver com o café da manhã, que é nutrição, enquanto o lanche da tarde é… curtição, de cheiros e de sabores.

Ah, doces tardes suburbanas… Ah, gostosa vagabundagem da meninice… Elas ainda existem por aí. Nós é que talvez não tenhamos mais olhos aguçados, narizes sensíveis, mãos sujas e pés descalços para encontrá-las e vivenciá-las.

No fundo, lá no fundo da alma, de cada um de nós há uma tarde dessas, esperando para ser resgatada pelo esforço de nossa memória.

Mãos à obra, caro leitor!

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Roubando almas

Relatos antropológicos nos dão conta de que índios, em seu contacto com os brancos, fugiam espavoridos ao verem sua imagem registrada pelas máquinas fotográficas.

Perguntados sobre o porquê desse pavor, os silvícolas explicavam, de olhos esbugalhados, que iriam morrer, porque suas almas teriam sido capturadas por essas engenhocas infernais.

Pois o que mais vemos agora são “ladrões de alma”. Se antes as fotografias exigiam um equipamento pesado e complicado, agora quase todo mundo tem à mão máquinas fotográficas, ou simplesmente um telefones celulares que permitem tirar fotos.

Desde meados do século XIX, quando Niépce, Daguerre e outros geniais inventores criaram as máquinas que permitiram “desenhar com luz” – segundo a etimologia da palavra “fotografia”, oriunda do grego – não pararam mais os aperfeiçoamentos que elevaram as simples, toscas e grandemente perecíveis formas de gravar imagens à condição da maravilhosa arte de fotografar.

Nos tempos que vivemos, a fotografia saiu do círculo exclusivo e especializado dos fotógrafos para as mãos muito menos experientes das pessoas comuns, com isso elevando à enésima potência os Narciso que há em cada um de nós.

Se levarmos em conta que este é o tempo do paroxismo das imagens, e mais, que a comunicabilidade instantânea internética dá o tom da comunicação global, temos criado o terreno fértil para o inimaginável crescimento dos “cliques”.

Há não tanto tempo assim, viam-se casais de namorados interrompendo seu passeio de mãos dadas em plena praça. Com o coreto ou o chafariz ao fundo, esses apaixonados substituiam a natural dinâmica corporal ditada pela paixão, inserindo entre um beijo e outro, a estática da pose para o lambe-lambe.

Hoje, quase não existem mais o coreto e o chafariz; escasseiam as praças; e raros namorados românticos assim se encontram por aí. Quanto aos fotógrafos de praças, com suas caixas sobre cavaletes, onde estão? Onde andam aquelas caras enrugadas, com óculos sobre o nariz, que víamos, encantados, emergir debaixo do pano preto que cobria a máquina – laboratório improvisado, rápido e prático – para nos apresentar um registro indelével de nossos amores?

Agora, todo mundo tem sua máquina, ou seu celular com câmera, para fazer fotografias. E o avanço tecnológico, trazendo a fotografia digital, aposentou as emulsões, as revelações malcheirosas com banhos químicos, as fotos em preto e branco… Aquela expectativa entre o clique e a observação do resultado acabou, matando muito da magia do fazer fotográfico. A foto apresenta-se imediatamente, no visor, boa ou ruim, com foco ou sem, mau ou bem enquadrada.

Fico pensando: será que essa vida corrida, com seus modernismos, sua insensibilidade crônica para o romantismo e a poesia, sua vocação irremediável para a pressa, não estará agindo como a máquina que assustava os índios? Será que essa vida não é, hoje em dia, u´a máquina que se impõe nos roubando as almas?

Como já lembrei, caro leitor, há cada vez menos praças. Também há menos lagos, como um daqueles em que Narciso acabou mergulhando e afogando a si e a sua vaidade. Será que esse registro cotidiano, compulsivo, dos cliques fotográficos que cada vez aumentam mais, não estarão nos arrastando para um mundo em que uma certa opacidade requerida pela condição humana, e a mínima privacidade, que nos permite encontrarmo-nos conosco, morrerão afogadas num lago de imagens e de narcisismo?

Máquinas fotográficas registram nossas imagens; câmeras nos espreitam de todos os lados. Mesmo quando escrevo estas modestas linhas, a câmera encarapitada na prateleira, logo acima do computador, me enquadra impiedosamente, lembrando-me de que, a qualquer momento, minha imagem pode ser captada e lançada aos quatro cantos do mundo através das infovias.

Felizmente, paciente leitor, ainda não inventaram máquinas que roubem o pensamento, a poesia, a paixão, a felicidade, a beleza, a loucura mansa – tudo isso que pode abrigar nosso verdadeiro ser das insensibilidades do mundo.

Por enquanto, acho que ainda podemos ficar tranquilos – nós, os índios e nossas almas.

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Aquelas manhãs

Eram maravilhosas aquelas manhãs. Menino da cidade, eu realizava o sonho do ano inteiro: passar as férias na roça. E sair na manhã luminosa da serra era viver intensamente o contato com a natureza, que cidade grande nenhuma poderia proporcionar.

O céu era incrivelmente azul, um manto cobrindo o mundo, apoiado no topo dos montes e contrastando com a massa verdejante da folhagem, aqui e ali pontilhada pelas folhas cor de prata da embauba, que, como espelhos, refletiam a luz forte do sol.

Muitas e muitas vezes, nesses passeios matinais, meu destino era o córrego que passava sobre o pontilhão da linha do trem. Essa estrutura de ferro também brilhava ao sol, permitindo ver o esmero dos ingleses nessas construções metálicas, com as longarinas de ferro engenhosamente entrelaçadas. Sobre ela, o trem passava resfolegando, ganhando velocidade para enfrentar a subida da serra, uns quatro ou cinco quilômetros adiante.

No trajeto, às vezes, eu descia por um caminho serpenteante em meio ao capim, até chegar a um bambuzal. Diante daquela touceira majestosa, feita de verdes das folhas e de amarelos dos bambus, eu quedava ouvindo e vendo a ação do vento matinal. Em movimentos cadenciados, as folhas do bambuzal se moviam como que acarinhadas por u’a mão imensa, e produzindo um som surdo, cavo, como um ronronar vindo de algum lugar onde se situa o cerne da vida da natureza.

Pisando com cuidado nas folhas secas, por lembrar que cobras adoram bambuzais, eu tirava uma vara que, depois de limpar com o canivete, se transformava numa perfeita vara de pescar.

O córrego, límpido, rumorejando na manhã feliz, era um espetáculo à parte. Nos arbustos próximos da margem, havia sempre uma libélula, ou uma cigarra produzindo seus zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz, que davam vontade de fechar os olhos e dormir, ali mesmo, à sombra de alguma folhagem, cedendo a uma preguiça condizente com o ritmo, lento, calmo, compassado, da vida vivida no interior.

Pescar, realmente fisgar o peixe e tirá-lo da água era o objetivo menor. O importante era sentir cada momento e preparar tudo, exercitando a calma proverbial dos verdadeiros pescadores: cortar a linha de nylon no tamanho certo, amarrá-la na varinha de bambu, prender o anzol na linha…

Agora era hora de preparar as iscas. Num lugar junto ao barranco, num canto ensombrado e úmido, eu cavava, com as mãos mesmo, revolvendo a terra até encontrar as minhocas, que punha com um pouco de terra numa lata, onde as bichinhas de um marrom escuro ficavam furando a terra quase negra, com movimentos lentos de seus anéis.

A luz intensa do sol da manhã, em cumplicidade com o vento, produzia um espetáculo lindo de se ver. Movida pelo vento, a superfície da água mostrava-se toda escamada, com cada dobra desse tapete de luz e movimento refletindo, facetadamente, o dourado do sol.

Vez por outra, as piabas, como desejando saudar a manhã maravilhosa, saltavam da água. Era como se, também, desejassem desafiar o pescador de meia-tijela que eu era, muito mais interessado em ver e sentir a vida do que, de fato, em pescar.

Mas, muitas vezes, eu voltava com alguns peixinhos numa fieira de capim, esta criativa forma de carregar os peixes reais – porque os peixes virtuais são carregados é na fieira de mentiras de certos pescadores!

Não existem, claro, manhãs exatamente como aquelas que tenho vívidas na memória, com suas cores, sons e até cheiros. No entanto, mesmo aqui na cidade, certas manhãs luminosas, próprias para celebrar a beleza da vida, me fazem reviver aquelas manhãs. Então, chego até a pescar no córrego da existência, revendo pérolas de luz formadas pelo sol sobre a água, enquanto tento fisgar minhas piabinhas de saudade.

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Pintando sonhos no céu

O dia de primavera é lindo. No céu, de um indescritível azul, nuvens branquinhas passeiam lentamente. Eis aí tudo de que preciso para pintar sonhos.

Em criança, como todo mundo, eu pintava carneirinhos. Um aqui, outro ali, outro acolá, rapidamente era possível ir pintando rechonchudos carneiros contra o fundo azul do infinito.

Cresci, e cresceram comigo as tintas da imaginação: não somente os negros e cinzas das desilusões, mas sobretudo os azuis, os verdes, os laranjas e amarelos do amor, da paixão e da esperança. Um arco-íris de possibilidades se abre diante de nós se soubermos aproveitar um quadro virtual usando nossa visão da alma.

Lá está: aquela nuvem é um camelo. A nostalgia dos desertos está presente no contorno de seu corpo de nuvem; oásis refrescantes vão se desenhando à frente em seu passeio pelas areias do espaço.

Um gato – siamês, bem peludo – mostra-se naquela outra nuvem. Com a contribuição do vento, é possível ver a cabeça do bichano se movendo e sua língua lenta a lamber-se na modorra do bonito dia.

Posso pintar no céu, com o pincel de brancura das nuvens e a tinta preciosa da imaginação, até o semblante de amigos – os que estão por aqui e os que já se foram: a avó carinhosa, o tio gordo, a sobrinha bonita, aquela namorada nunca mais vista, levada pela vidas nos seus descaminhos…

Gente sisuda, gente má, gente antipática tem também suas feições traçadas com bastante nitidez com a tinta branca das nuvens: o chefe intragável, a atendente insuportável, a caratonha assustadora do credor, o rosto arrogante daquele jovem que desrespeita velhos, com a ilusória certeza de que jamais envelhecerá…

Pinto cidades, imensas cidades, com prédios altíssimos. Esses arranha-céus imensos não ficam imóveis, com aquela imobilidade por vezes assustadora dos edifícios reais. Eles se movem suavemente, mantendo-se eretos mas dóceis diante da dança lentíssima imposta pelo vento.

Paisagens, não há melhor modo de pintá-las. De todas as viagens, trago guardados no baú da memória fragmentos das paisagens vistas e vividas. A tinta de nuvens vai traçando pracinhas do interior com igrejas humildes, ou grandes catedrais que carregam o peso da história em grandes cidades. Surgem grandes avenidas ou caminhos desgarrados no meio do mato; alamedas de árvores frondosas e centenas de coqueiros ladeando a sinuosidade de praias; montículos, montes e montanhas vão se formando, segundo o pincel de sonho que usa as tintas de minha imaginação, cortados por estradas em aclives e declives.

Mesmo automóveis, metrôs, ferrovias, caminhões vão aparecendo – todos movidos com o combustível puro, poético e não-poluente do vento.

Flores, plantas e árvores então, as pinto aos milhares: rosas, margaridas, miosótis, orquídeas, avencas, bananeiras, ficus, palmeiras, mangueiras. Até a humildade do capim fica bem pintada no céu azul.

Mas saiba, caro leitor, que não é fácil pintar com nuvens brancas no azul do céu. É preciso um bom estoque de imaginação. São necessários olhos de ver, coração para espiar. Além disso, é preciso rapidez. Sim, porque as nuvens e a luminosidade do céu mudam rapidamente. Às vezes tão rápido que somos surpreendidos com desenhos que estão ali mas não os fizemos. Estes são desenhos feitos à nossa revelia por nosso eu profundo, um pintor caprichoso e algumas vezes implacável ao nos exibir figuras que não desejaríamos ver.

O céu do dia lindo está aí, caro leitor, azul, azul, irresistivelmente azul. As nuvenzinhas brancas estão à disposição. As tintas da imaginação existem em cada um de nós. O que você está esperando para começar a pintar seus sonhos no céu azul?

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