Feeds:
Posts
Comentários

Archive for the ‘Zuenir Ventura’ Category

Estou igual àquele jornalista do interior que, quando Hitler invadiu a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial, escreveu: “Bem que eu avisei.” No dia 29 de junho, quando ainda se comemorava o despertar do gigante, “avisei” que em alguns setores da sociedade já se notavam sinais de preocupação e medo. É que logo depois de quatro dias de tumulto no Centro do Rio, shoppings, lojas de rua, hotéis, além de clínicas médicas e odontológicas, reclamavam da queda de 50% no faturamento e dos estragos materiais sofridos. Eu falava no “risco de desvirtuamento das manifestações” — que tinham conquistado rapidamente o apoio da população — causado pela “infiltração de vândalos, arruaceiros e demais bandidos encapuzados”. Estava virando rotina: as passeatas começavam pacíficas, ordeiras, iam engrossando e acabavam em arrastões, com coquetéis molotov, quebra-quebra, invasões de edifícios públicos, saques. Alegava-se com razão que a polícia tinha começado tudo, com sua costumeira truculência, e que a PM do Rio e de SP infiltrara agentes nos protestos para incitar a desordem.

Mas o fato é que a violência foi contaminando o movimento e, de lá para cá, o quadro só se agravou, com o esvaziamento da participação. Um retrato disso é o que aconteceu na Cinelândia, no Rio, onde há pouco mais de um mês se concentraram 200 mil manifestantes e, anteontem, não mais de 200, que paralisaram a cidade por sete horas, sobrepondo-se ao direito de ir e vir, tão legítimo quanto o de se reunir. Mais grave ainda foi a tentativa de invasão do Hospital Sírio-Libanês em SP por 50 enfurecidos gatos pingados para reivindicar melhores condições de atendimento à população, como se esse tipo de ação tivesse alguma eficácia. No episódio, a falta de limites atingiu o auge da insensatez.

Por tudo isso é que já se ouvem aqui e ali indignados desabafos do tipo: “chega!”, “já está demais!” Como já vi um filme parecido, em que a “violência revolucionária” levou à prisão, ao exílio e à tortura uma parte do que havia de melhor numa geração, acho que esses jovens de agora, pelo menos os que acreditam na “violência como expressão política”, deveriam se inspirar menos na força bruta e mais na não violência ativa e eficaz, aquela de Gandhi, Martin Luther King e Mandela, que não tinham nada de inofensivos pacifistas. É bom lembrar que, com ela, o líder indiano conquistou a independência do seu país; o pastor americano derrubou as leis segregacionistas contra os negros; e o grande herói sul-africano pôs fim ao apartheid.

O GLOBO – 17/08/2013

Read Full Post »

Eram quase 2 horas da madrugada de anteontem e a televisão continuava transmitindo imagens estarrecedoras de fúria e destruição que poderiam ser da Turquia ou da Síria. Mas o barulho ensurdecedor dos helicópteros sobrevoando nossos prédios não deixava dúvida: o clima de guerra civil era aqui, em Ipanema e, principalmente, no Leblon, bairros conhecidos pelo hedonismo e não pelos conflitos. Algo de estranho acontecia.

As manifestações anteriores já davam sinais de que as hordas de vândalos estavam fugindo ao controle. Nesta, foi pior: o controle passou a ser deles, que ditaram o ritmo da violência e da desordem.

Mascarados, travestidos de grupos políticos, eles se infiltraram entre os manifestantes e, como bárbaros, devastaram o que encontraram pela frente: quebraram vitrines, saquearam lojas, invadiram agências bancárias. “Em 50 anos nunca vi coisa igual”, disse um antigo morador da região.

Ao contrário das outras vezes, em que a polícia foi acusada de truculência e excessos, desta vez ela foi omissa. Segundo várias testemunhas, só agiu depois que o tumulto e o caos haviam tomado conta das ruas. E, no entanto, como disse alguém, foi “um passeio pelo Código Penal”, tantos os crimes cometidos: formação de quadrilha, dano ao patrimônio privado, furto, arrombamento, incêndio, explosão. Por que a polícia não agiu?

No dia seguinte, o comandante da PM, coronel Erir Ribeiro, justificou-se, referindo-se a um certo pacto que teria sido firmado com a Anistia Internacional e a OAB para a redução do uso de armas não letais, como gás lacrimogêneo, nos protestos desta semana. Para ele, isso não funcionou.

Porém, o presidente da Ordem, Felipe Santa Cruz, nega o acordo e lança uma grave suspeita — a hipótese de que a polícia teria agido assim, de forma política, “para jogar a opinião pública contra os manifestantes”.

Finalmente, se algo de positivo ficou desta crise na segurança pública foi a decisão do procurador-geral da Justiça, Marfan Vieira, de criar uma comissão especial formada por representantes do Ministério Público e das Polícias Civil e Militar, com o objetivo de identificar os grupos responsáveis pelo vandalismo e puni-los.

Dois deles pelo menos serão investigados: os Black Blocs e os Anonymous. Os primeiros, que se dizem de inspiração anarquista, foram vistos à frente de arruaças em quase todas as manifestações. Por que essas providências só foram tomadas agora, quase em cima da chegada do Papa, só Deus sabe.

Read Full Post »

Impor ordem à alegria (Blog do Noblat)

Zuenir Ventura, O Globo

E pensar que até outro dia reclamava-se de que o carnaval de rua no Rio tinha acabado, estava morto. Hoje há até de sobra. Só no fim da semana passada, 114 blocos desfilaram pela cidade, 59 dos quais pela Zona Sul. Está bom ou quer mais?

Sou do tempo em que, quando o Suvaco de Cristo saiu pela primeira vez, fui chamado pelo diretor do jornal em que trabalhava para me advertir, escandalizado, de que aquele nome não podia mais ser publicado. Era de “mau gosto”, além de “heresia inadmissível num jornal católico”.

Acho que ele morreu para não ver o desfile de alguns blocos atuais como Xupa Mas Não Baba, Que Merda É Essa? Encosta Que Ele Cresce, Butano na Bureta.

Nunca fui folião, mas não sou estraga-prazer. Curto ver a festa. Quando no último domingo milhares de pessoas ocuparam as pistas da Praia de Ipanema pulando e cantando em coro, como se estivessem sendo regidas por um maestro, cheguei a ter vontade de cair no samba. Em nenhum lugar do mundo se vê um espetáculo tão espontâneo e animado.

Quase dez horas depois, no entanto, meus ouvidos não aguentavam mais, queriam um pouco de silêncio, sem falar na angústia de ficar preso, sem poder sair nem entrar na rua. E se houvesse a necessidade de uma emergência? Sei de moradores e vizinhos da Rua Farme de Amoedo que entre sexta e domingo não conseguiram dormir uma noite sequer.

Justiça seja feita, as autoridades estão tentando descobrir como conciliar a alegria e a ordem urbana, o direito dos que querem brincar e o dos que não querem. A prévia do fim de semana passado, porém, é um aviso de que pode ser pior no carnaval que começa hoje. Mais de 200 veículos foram rebocados, mais de 700 multados e mais de 200 pessoas apanhadas urinando na rua durante a passagem dos blocos, sendo quatro mulheres.

Antes, alegava-se que a culpa era da falta de banheiros, que foram então espalhados pela cidade. Os mal-educados agora urinam ao lado ou atrás dos próprios mictórios.

Sei que é melhor ter as ruas ocupadas alegremente por blocos carnavalescos, com todos os inconvenientes, do que tomadas por manifestantes enfrentando a polícia como está acontecendo em tantos países. Mas não se trata de uma coisa ou outra. É preciso garantir o direito à alegria, mas também à circulação e à tranquilidade dos que moram no bairro.

Quanto aos mijões e aos vândalos, que pisam canteiros e quebram portões de edifícios, a saída é aumentar o cerco e a repressão. O que não se pode é permitir que uma festa com uma história tão bonita como o carnaval de rua — agora revitalizado — seja desvirtuada por uma minoria ativa de foliões para os quais brincar é espalhar maus modos e mau cheiro pela cidade.

Read Full Post »

O cenário é uma beleza – Zuenir Ventura

Minha alma estava tão lavada quanto o ar do Rio nesta época do ano: sem névoa, transparente, deixando aparecer com nitidez o recorte das montanhas. Na véspera eu fora ver “Um porto para Elizabeth Bishop” e agora, caminhando pelo calçadão, continuava ouvindo a grande poeta americana falando da cidade. O horror que sentira ao chegar em 1951: “Tudo tão sujo, tão desorganizado! Como é que eles conseguem viver aqui?”

O sol da manhã agora não é aquele sol de verão que reverbera na areia e quase cega, queima e tosta. Não: o que se vê nestas manhãs de inverno carioca (inverno?) não é sol, é luz. Ele não queima, aquece, não bate na gente, toca. Como é que a Bishop não viu isso?! “É tudo desleixado, corrompido. O Rio me deprime”. Será que ela tem razão? “O Rio é um cenário para uma cidade maravilhosa, mas não é uma cidade maravilhosa”.

A frase me irritou ao ouvi-la, talvez porque, em última instância, essa é para nós uma questão aflitiva e recorrente. Somos mesmo a Cidade Maravilhosa ou uma “inútil paisagem”? Quando deixaremos de ser o cenário mais que perfeito de uma realidade imperfeita?

Continuei vendo a peça. Que combinação extraordinária entre um excelente texto, uma admirável interpretação e uma impecável direção – sem falar no cenário, na trilha sonora, na iluminação. Que rara harmonia entre emoção e estética. Fui para ver um monólogo e “vi” duas mulheres no palco: Elizabeth e Lota. Não me perguntem como isso acontece.

Como, sem recursos de recriação visual, sem foto, sem filme, apenas com a voz e o corpo, a Regina consegue esse feito? Uma coisa é certa: depois de Regina Braga, Elizabeth Bishop não será mais a mesma – não terá outra voz, outro rosto, outros belos olhos. Com o sol alisando minha careca, vou me perguntando quem afinal vi: Regina Braga, Regina Bishop ou Elizabeth Braga?

Continuo andando. Meus aeróbicos companheiros de todo dia vão passando. A jovem mãe que sumiu há meses e agora volta empurrando um carrinho de bebê. Eliana Caruso, a que, como o Rio, tem uma única estação: está sempre da mesma cor, mulata. A poeta Ana Bruno dá um adeusinho brejeiro. Uma linda garota de Ipanema cruza e lança um olhar com um sorriso meio maroto, mas que, sem fantasia, quer dizer apenas “te conheço de algum lugar, tio”.

Do Posto Onze volto ao Posto Nove e só então, quase chegando, presto mais atenção na nova obra da prefeitura no calçadão: vários bicicletários, uns cinco ou seis só no meu percurso. São 11h5m e o que eu tenho diante de mim dispõe de 42 vagas, das quais apenas duas estão ocupadas. A calçada ali tem mais ou menos quatro metros de largura, medidos com meus passos. A geringonça, quando cheia de bicicletas, ocupa a metade do espaço. São dois metros roubados dos pedestres.

Um atleta passa correndo pela ciclovia e, vendo aquele maluco medindo calçada, grita: “Alguém tá embolsando grana com isso!”. A obra é tão desnecessária, tão absurda, que tendo a considerar a denúncia leviana que acabo de ouvir. Agora, os ciclistas, que já não respeitam o sinal de trânsito, que nos atropelam ao atravessar na faixa, vão ter mais um pretexto para a nova invasão: “Não enche o meu saco, estou indo estacionar”, dirão educadamente aos chatos dos sem-espaço que reclamarem.

Fico pensando o que Elizabeth acharia disso. Com seu olhar estrangeiro, ela fez observações hilárias sobre a nossa terra. Descobriu, por exemplo, que a gente adora se queixar do fígado: “É o único órgão em funcionamento no Brasil”. “A elite brasileira deve ter muito pouca gente, porque todo mundo se conhece. Todos os governantes são parentes de todos os intelectuais”. Sobre desfile de escolas de samba: “É a confusão mais organizada que eu já vi”.

Tendo descido aqui para uma escala, Elizabeth acabou permanecendo 15 anos seguidos, até 1966 (depois, mais sete anos indo e vindo). Por Lota, ela se apaixonou logo. Pelo Brasil, levou algum tempo, foi seduzida aos poucos, resistindo criticamente. São duas histórias de amor enternecedoras. No final ela confessa que este país e esta cidade que ela tanto odiou no começo ajudaram-na a sobreviver. Admite, porém, que o Brasil perdeu um pouco da ternura: “Ficou cada vez mais duro, cada vez mais truculento”.

E cada vez mais absurdo, ela diria se tivesse visto os bicicletários, essa pequena mostra do que se tem feito com o Rio: desconstrói-se o que não deve e constrói-se o que não precisa. A triste realidade é que, de Elizabeth Bishop para cá, a cidade caminha para ser o que ela achou que era: um cenário lindo, duro e truculento.

Read Full Post »

“O senhor aqui é idoso”, gritava a senhora para o guarda, no meio da confusão na porta do Detran da Avenida Presidente Vargas, apontando com o dedo o tal “senhor”. Como ninguém protestasse, o policial abriu o caminho para que o velhinho enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua carteira.

Olhei em volta e procurei com os olhos 0 velhinho, mas nada. De repente, percebi que o “idoso” que a dama solidária queria proteger do empurra-empurra não era outro senão eu.

Até hoje não me refiz do choque, eu que já tinha me acostumado a vários e traumáticos ritos de passagem para a maturidade: dos 40, quando em crise se entra pela primeira vez nos “entra”; dos 50, quando, deprimido, salte que jamais vai se fazer outros 50 (a gente acha que pode chegar aos 80, mas aos 100?); e dos 60, quando um eufemismo diz que a gente entrou na “terceira idade”. Nunca passou pela minha cabeça que houvesse uma outra passagem, um outro marco, aos 65 anos. E, muito menos, nunca achei que viesse a ser chamado, tão cedo, de “idoso”, ainda mais numa fila do Detran.

Na hora, tive vontade de pedir à tal senhora que falasse mais baixo. Na verdade, tive vontade mesmo foi de lhe dizer: “idoso é o senhor seu pai. O que mais irritava era a ausência total de hesitação ou dúvida. Como é que ela tinha tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe garantia que eu tinha 65 anos, se nem pediu pra ver minha identidade? E 0 guarda paspalhão, por que não criou um caso, exigindo prova e documentos? Será que era tão evidente assim? Como além de idoso eu era um recém-operado, acabei aceitando ser colocado pela porta adentro. Mas confesso que furei a fila sonhando com a massa gritando, revoltada: “esse coroa tá furando a fila! Ele não é idoso! Manda ele lá pro fim!” Mas que nada, nem um pio.

O silêncio de aprovação aumentava o sentimento de que eu era ao mesmo tempo privilegiado e vítima — do tempo. Me lembrei da manhã em que acordei fazendo 60 anos: “Isso é uma sacanagem comigo”, me disse, “eu não mereço.” Há poucos dias, ao revelar minha idade, uma jovem universitária reagira assim: “Mas ninguém lhe dá isso.” Respondi que, em matéria de idade, o triste é que ninguém precisa dar para você ter. De qualquer maneira, era um gentil consolo da linda jovem. Ali na porta do Detran, nem isso, nenhuma alma caridosa para me “dar” um pouco menos.

Subi e a mocinha da mesa de informações apontou para os balcões 15 e 16, onde havia um cartaz avisando: “Gestantes, deficientes físicos e pessoas idosas.” Hesitei um pouco e ela, já impaciente, perguntou: “O senhor não tem mais de 65 anos? Não é idoso?”

— Não, sou gestante — tive vontade de responder, mas percebi que não carregava nenhum sinal aparente de que tinha amamentado ou estava prestes a amamentar alguém. Saí resmungando: “não tenho mais, tenho só 65 anos.”

O ridículo, a partir de uma certa idade, é como você fica avaro em matéria de tempo: briga por causa de um mês, de um dia. “Você nasceu no dia 14, eu sou do dia 15”, já ouvi essa discussão.

Enquanto espero ser chamado, vou tentando me lembrar quem me faz companhia nesse triste transe. Ai, se não me falha a memória — e essa é a segunda coisa que mais falha nessa idade —, me lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anysio estariam sentados ali comigo. Por associação de idéias, ou de idades, vou recordando também que só no jornalismo, entre companheiros de geração, há um respeitável time dos que não entram mais em fila do Detran, ou estão quase não entrando: Ziraldo, Dines, Gullar, Evandro Carlos, Milton Coelho, Janio de Freitas (Lemos, Cony, Barreto, Armando e Figueiró já andam de graça em ônibus há um bom tempo). Sei que devo estar cometendo injustiça com um ou com outro — de ano, meses ou dias —, e eles vão ficar bravos. Mas não perdem por esperar: é questão de tempo.

Ah, sim, onde é que eu estava mesmo? “No Detran”, diz uma voz. Ah, sim. “E o atendimento?” Ah, sim, está mais civilizado, há mais ordem e limpeza. Mas mesmo sem entrar em fila passa-se um dia para renovar a carteira. Pelo menos alguma coisa se renova nessa idade.

Read Full Post »

A nossa bela vista – Zuenir Ventura

Quando se sai de férias e viaja, e eu estou fazendo as duas coisas, não se sabe se é melhor a ida ou a volta. Nos dois casos, há uma certa confusão de sentimentos: pena de sair, achando que vai acontecer uma porção de coisas sensacionais enquanto a gente estiver fora, e vontade de se desligar de tudo, não saber de nada, viver outra vida, nem que seja por uma semana. Depois, a mesma coisa: é ótimo chegar, mas em geral as férias terminam no melhor da festa.

Vai ver que é por isso que o governo quer votar logo o projeto que flexibiliza as leis trabalhistas, acabando com essa anacrônica folga de 30 dias corridos. Por que não dividi-la em cinco ou seis vezes? Afinal de contas, o presidente não precisa de férias para viajar ao exterior.

Do que mais sinto falta — falta, não saudade — é da paisagem. O olhar é o sentido que mais se ressente lá fora. Fazem falta as montanhas, o mar, a luminosidade, o pôr-do-sol no Arpoador, a praia amanhecendo. Depois vêm, num belo sincretismo sensorial, misturando tudo, os sons de todo dia, o cheiro de maresia, o calor do sol na pele, o gosto de certas comidas. Mas a vista está em primeiro lugar. Daí eu ter acompanhado com interesse essa campanha A Maravilha do Rio, para eleger o símbolo mais querido da cidade, entre seis opções: Pão de Açúcar, Corcovado, Lagoa Rodrigo de Freitas, Baía de Guanabara, praias e o estádio do Maracanã.

Não é uma escolha fácil, já que poucas cidades têm tantos cartões-postais naturais como essa nossa, espremida entre a montanha e o mar, onde vigora mais o espaço do que o tempo, mais a geografia do que a história. O arquiteto Augusto Ivan observou muito bem que, ao contrário de Paris, Nova York, Roma, Veneza, Londres, que evocam “imagens sólidas, concretas”, o Rio “traz imediatamente à lembrança o sol, a mata, as montanhas, depois, talvez, o resto, tamanha a força da natureza carioca”.

Se fosse para escolher somente entre os ícones inevitáveis, acho que ficaria mesmo com o Corcovado, pelo carisma, universalidade, carga de significados e por ser a melhor síntese simbólica do Rio. Com todo respeito, porém, se pudesse fazer uma mudança, poria São Sebastião no lugar do Cristo. Acho que o nosso padroeiro tem mais a ver com o carioca. Mártir, estóico, resistente e zen, ele representa melhor o espírito de uma cidade tão sofrida, toda flechada ao longo de sua história, até hoje.

De qualquer maneira, o Corcovado e o Pão de Açúcar têm sido unanimidade entre os viajantes estrangeiros, ou quase, pois há quem não goste. O antropólogo francês Lévy-Strauss, por exemplo, autor de “Tristes trópicos”, não achou bonita a Baía de Guanabara e escreveu que aqueles dois cartões-postais eram “cacos perdidos nos quatro cantos de uma boca desdentada”. Onde ele viu uma boca sem dentes outros, inclusive compatriotas seus, perceberam que havia ali a evocação metafórica de ventre e útero, convidando, com suas sendas, reentrâncias e depressões profundas, ao gozo de viajantes e forasteiros. Se não fosse implicância, a gente poderia dizer que esse antropólogo de gosto exigente, que achou tudo tão feio no Rio, elogiou recentemente o livro de José Sarney.

Mas essa miopia de Lévy-Strauss é rara. Dificilmente se encontra algum estrangeiro que não se deslumbre com a paisagem carioca. Mesmo a poetisa Elizabeth Bishop redimiu-se. Como se sabe, ela é autora da famosa frase “O Rio é um cenário para uma cidade maravilhosa, mas não é uma cidade maravilhosa”. Ao chegar, em 1951, achou “tudo tão sujo, tão desorganizado! Como é que eles conseguem viver aqui?”. Mas no final mudou completamente de opinião e confessou que a cidade que ela tanto odiou ajudou-a a sobreviver.

Outro dia, a propósito da campanha A Maravilha do Rio, fiz uma enquete num grupo: “Qual a paisagem de que você mais gosta?” Valia não só paisagem, mas também vista, cantinhos, pedaços ou aspectos da cidade. Vocês sabem qual foi uma das vistas mais votadas? Aquela que se tem da Lagoa ao sair do Túnel Rebouças. Pude constatar depois que outras pessoas achavam a mesma coisa. Alguém discorda?

O Rio tem uma paisagem para cada gosto. O problema é a paisagem humana. Como deixar de ser o belo cenário de uma tragédia? (Mas isso é para outra ocasião) Tom Jobim dizia que a melhor maneira de ser ver Nova York é de maca. Aqui, não: pode-se ver deitado, de lado, de cima, não importa, a beleza é a mesma, de preferência com curva. Oscar Niemeyer, poeta do concreto armado, tem razão ao fazer poesia com as palavras:

“Não é o ângulo reto que me atrai/Nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem/O que me atrai é a curva livre e sensual, /A curva que encontro nas montanhas…/Nas ondas do mar,/No corpo da mulher preferida”.

Até a volta, Cidade Maravilhosa.

30/03/2002 – O Globo

Read Full Post »

Praia, o nosso melhor lugar-comum – Zuenir Ventura

praia1
O repórter da rádio paulista quer saber como vai ser este verão, e liga não para o Serviço de Meteorologia, mas para mim, no dia em que entrou em vigor a nova estação. Pergunta se já está fazendo muito calor, como vai ser a moda, como serão os biquínis, quais os principais points e que dicas de restaurantes, passeios, bares eu daria a um turista.

Quer saber também como foram os outros, os que não voltam mais, qual o melhor, o mais emocionante, o inesquecível e, a propósito, “quantos verões” eu carrego nessa minha outonal carcaça.

Sei que é uma reportagem-mico, mas sinto pena da aflição do colega. Para não deixá-lo sem ter o que levar ao ar, vou respondendo, na medida do possível, com a ajuda da memória e do que tenho lido e do que tenho visto aqui nas areias de Ipanema.

A primeira coisa que me ocorre, e não sei nem se disse isso para ele, é que até na moda esses moribundos, quase finados anos 90, parecem ter vergonha de seus feitos e efeitos. Sem imaginação, eles resistem a enfrentar o futuro e preferem, como em tudo, a nostalgia e a cópia. Só assim se explica que se vá voltar a usar neste verão as tangas estilo anos 70 com tomara-que-caia dos anos 40/50. Tudo enfeitado por velhas miçangas, pode?

Além disso, e sem falar nos horrorosos sungões e bermudões, os biquínis vão cobrir mais áreas do corpo feminino. Como é contraditória a moda. Desnuda a mulher até o limite do possível, até a saturação, e depois, para obter mais sensualidade, passa a cobri-la de novo, aos poucos.

Alguns estilistas falam que o cáqui vai dominar o verão, mas outros mais sensatos argumentam com razão que o cáqui é na verdade a nossa cor da pele, não da roupa. Esse ton-sur-ton aqui não pega.

Com medo de cair naquele ridículo papo de velho saudosista – “Ah, não se fazem mais verões como os de antigamente” – não me detive muito nas recordações do memorável verão da virada de 67 para 68, nem daquele das dunas da Gal, nem o do fio dental ou o da inesquecível estação da abertura em fins dos 70/início dos 80: da anistia, da volta dos exilados, quando o país fez a travessia democrática, quando Gabeira arrasou com sua tanga lilás e quando os jovens, livres da ditadura, descobriram a liberdade de comportamento e inauguraram a amizade colorida.

Não dá para não dizer “Bons tempos aqueles pré-aids!”. esses, sim, dão saudades. Outro dia, conversando com jovens, me dei conta de que a geração de 17, 18 anos praticamente não sabe o que é sexo sem camisinha, pelo menos quando está a fim de segurança. A revolução sexual dos anos 60, quem diria, foi derrotada por uma peste tendo por símbolo o que, logo depois da pílula anticoncepcional, parecia tão anacrônico quanto uma galocha: a camisinha.

Mas não era isso que o entrevistador paulista queria saber, e acho que nem vocês. Era que dicas eu tinha para dar. Do meu terraço eu via a areia coalhada de corpos dourados e o mar, manso, manso. Uma brisa amenizava os 40 graus que devia estar fazendo e lá no horizonte preparava-se a chuva que está se repetindo todas as tardes.

Pode ser que me engane, mas esse verão não vai ser igual ao outro que passou, o do El Niño. Quando nada porque é o verão de La Niña, de índole amena, mas inconstante e incerto como os tempos que estamos vivendo.

Acabei recomendando o óbvio ao turista acidental: quando a chuva deixar, um mergulho nas praias de Ipanema. Em seguida ao qual ele deve estirar-se ao sol e evitar todo esforço, a não ser o de esticar o pescoço para ver uma bela mulher passar ou de ir ao calçadão tomar água de coco. E à tarde se preparar para o pôr-do-sol no Arpoador, a que se deve assistir como se assiste a uma missa.

Como vêem, nada de original, tudo lugar-comum. Mas, pensando bem, a praia é o nosso melhor lugar-comum.

26/12/1998
Zuenir Ventura – Crônicas de um Fim de Século – Editora Objetiva Ltda
Cronista das grandes cidades, o jornalista Zuenir Ventura traz em seu texto saboroso e inteligente os conflitos e sonhos do homem comum. Na virada do século, uma reflexão sobre a existência humana: o homem e seus medos urbanos.

Read Full Post »