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Archive for the ‘Affonso Romano de Sant’Anna’ Category

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.

Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.

Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.

Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal?

Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.

Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.

Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela.

Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”, ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.

Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto.

No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.

O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.

Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.

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O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.

De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.

Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.

A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.

A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.

A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.

A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.

O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.

Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.

Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.

Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.

A mulher madura está pronta para algo definitivo.

Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.

A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.

Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

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De repente, dei-me conta de que Sua Alteza d. João de Orleans e Bragança estava andando ao nosso lado, pisando aquelas pedras irregulares e desequilibrantes de Paraty.

Aliás, ele mora em Paraty. E lá vai ele com a Sua/Nossa Alteza Teresa (de Sousa Campos), andando entre os populares, cumprimentando pessoas na porta de casas e bares, apoiado discretamente numa bengala. Ajudo-os a escalar aquela muretinha de meio metro erguida para impedir que a maré cheia invada a igrejinha ali defronte. E enquanto vai anoitecendo somos umas cem pessoas caminhando para dentro da Igreja de Santa Rita para ouvir um concerto, onde a pièce de resistence será “As quatro estações”, de Vivaldi.

Alguns minutos antes, Joãozinho, o príncipe, já nos falava de Paraty com tal entusiasmo que, ao ouvi-lo, só nos resta fazer a mochila, armar a tenda ou mudar para lá e virar uma das pedras tombadas da cidade. Ele fez isso. Seu pai fez isso. Outros estão fazendo isso. De uma cidade colonial, Paraty está virando uma cidade real. Real em múltiplos sentidos.

– Uma Petrópolis à beira-mar?

Imagine que até 1960 Paraty tinha apenas 3.046 habitantes. Havia ficado esquecida ali junto à Serra do Mar durante uns 200 anos. Com a abolição da escravatura, esvaziou-se mais. Mas teve um tempo em que possuía sete valorosos fortes para guardar suas riquezas contra o ataque dos piratas, que vinham ávidos atrás do ouro e dos diamantes que desciam pelos caminhos das Gerais.

Hoje quando a vida pelas bandas de Rio e São Paulo está perigosíssima, quando o famigerado “crime organizado” amedronta nossas cidades, gerido até mesmo de dentro de nossas próprias penitenciárias – como estarrecedoramente publicam os jornais – fico pensando se não estamos vivendo um clima semelhante àquele dos séculos XVII e XVIII, quando corsários ficavam à espreita entre Paraty e Cabo Frio, assaltando as embarcações ou mesmo invadindo e saqueando as cidades, como hoje os marginais fazem, nos humilhando a todos.

Lá vem, por exemplo, o capitão francês Duclerc, em 1710, com cinco navios desembarcando em Guaratiba, seguindo depois pelas cidadezinhas da costa, pilhando e batalhando nas vielas, rumo a Paraty. Lá vem Duguay-Trouin, que em 1711 saqueia o Rio com seus seis mil homens e 17 navios, levando como troféu para Luiz XIV o sino da Sé do Rio de Janeiro.

Tento esquecer isso. Afinal o ambiente no interior desta igrejinha não podia ser mais lindamente simples: iluminação à vela, e aqueles altares com colunas gregas barrocamente revestidas. Dizem que Lúcio Costa gostava especialmente deste frontão, destes altares, destes cunhais em cantaria.

Como preâmbulo, a Orquestra Pró-Música executa outras peças. Que bela acústica tem essa igrejinha do século XVIII. Como a plasticidade dessa música se amolda à essa arquitetura colonial barroca. Até mesmo este intermezzo da “Cavalaria Rusticana”, de Mascagni, soa bem aqui.

É inevitável a lembrança. Músicas e perfumes levam-nos em viagens pelo passado. E estou aqui, mas estou também na minha adolescência ouvindo esse intermezzo, que era tocado enquanto as majestosas cortinas daquele majestoso Cine Teatro Central iam se abrindo para começar uma corriqueira sessão de cinema.

Houve um tempo em que um filme era apresentado com um ritual digno de uma ópera, de um grande espetáculo. As cortinas iam se recolhendo e as lâmpadas do teatro iam se apagando, se descolorindo até a escuridão, de onde emergia a luminosa tela.

Essa igrejinha é da mesma época em que viveram Mozart e Vivaldi. Esse concerto para clarineta de Mozart, portanto, está soando há uns 200 e tantos anos. Há uns 200 e tantos anos estão soando esses violinos de Vivaldi.

– Estou em Viena, onde viveu Mozart e onde morreu Vivaldi?

Não, estou em Paraty, cidade de nome indígena significando “peixe da família das tainhas”, ouvindo uma orquestra em que o maestro tem também sobrenome indígena – Tibiriçá.

Então, vou consultar coisas e aprendo que naquela região viviam os índios guaianás.

– Où sont-ils? – perguntaria Villon.

E Bandeira responderia: “Estão todos dormindo, dormindo profundamente”.

Aliás, pior, foram dizimados, razão pela qual, aprendo num livro de Maria Eliza Carrazoni, que dona Maria Jacome de Melo, fazendo uma campanha em 1646 para que parassem de matar índios, doou terreno para a construção da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. E vai ser outra lendária mulher de Paraty, dona Geralda Maria da Silva, que no século XVIII solta a grana para a construção da matriz que acolhia “todas as camadas sociais do município durante o Império”. Dizem que ela era filha de um corsário, e queria com essa obra expiar os pecados da família.

Índios. D. João. Música. Barroco. América.

Este Vivaldi que está soando aqui, este Vivaldi que era padre, mas não rezava missa, este Vivaldi que viajava com sua amante Anna Guiraud, este Vivaldi que escreveu 550 concertos, sendo 230 para violino, este Vivaldi que deixou 20 óperas tematizou numa delas a vida de um índio: “Montezuma”. Foi encenada no Teatro Sant’Angelo, em Veneza, em 1733, contando o trágico encontro do conquistador Hernan Cortès com o chefe indígena, que foi traído e teve seu reino aniquilado.

A história é uma ópera. Com solos, sangue, árias, coro e muita esperança. A música (como a crônica), no entanto, vai terminar.

Vivaldi – maestro di violino – vai descrevendo didaticamente os acordes que lhe sugerem a primavera, o verão, o outono e o inverno. As estações se sucedem. Sucedem-se os corsários e as tribos indígenas. O ouro muda de mão.

A noite nos espera. As pedras das ruas de Paraty encaminham nossos passos. E o mar e a música sobrevivem às estações.

O GLOBO – 24/01/2001

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Todo mundo sabe o que é uma guerra. Mas nem todo mundo sabe o que é pós-modernismo. Bush, por exemplo, é pós-moderno, sem o saber. E se você não sabe exatamente o que é pós-moderno, não se avexe. Os teóricos também não estão muito seguros sobre isto. É comum encontrarmos nos bons ensaios a respeito (por exemplo, “Poética do pós-modernismo”, de Linda Hutcheon, ed. Imago), a afirmação: “O pós-moderno é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte, os próprios conceitos que desafia”.

Esse termo — pós-modernismo — começou a ser usado mais insistentemente nas últimas décadas do século passado. Vinha da arquitetura que reaproveitava formas clássicas. Em breve, o termo transbordou, atingiu tudo: das artes plásticas à literatura, e passou a ser usado para explicar a ideologia dominante, a cultura contemporânea e a era da globalização. Logo logo estudos sobre pós-modernismo viraram moda universitária, começaram a render bolsas de estudo e pesquisa, e autores, que precisam de rótulos para aparecerem, começaram a se auto-intitularem pós-modernos.

Bush, como lhes disse, é pós-moderno sem o saber. Não sei que curso ele fez lá no Texas. (Dizem que antes da Casa Branca ele nunca tinha ido à Europa). Por que ele seria pós-moderno? Porque um dos traços da malfadada pós-modernidade é o pastiche. Em arte se diz: fulano fez um pastiche de sicrano. Quer dizer: copiou, aproveitou o que já existia, escondeu sob a máscara do outro a sua precária criatividade. Pois Bush filho é primeiramente o pastiche do Bush pai. O pastiche é a impotência travestida de potência. A vontade de ser aquilo que não se é. O pastiche é o oposto da paródia, esta sim, uma revivificação da linguagem. Enfim, a arte das últimas décadas, confessadamente, vive recorrendo ao pastiche como outros recorrem ao viagra.

Algumas charges, ilustrações e textos na imprensa mostram como Bush é pastiche também de um César levando a pax romana (ou guerra?) a todas as províncias do império. Nessa linha, Norman Mailer escreveu que Bush quer prolongar o sonho imperial americano para o século XXI. Mas como quem quer repetir a História acaba fazendo História de segunda mão, ou pastiche, os americanos estão reencenando o neocolonialismo do século XIX e exercendo um imperialismo tardio. Bush e Blair pensam estar repetindo Roosevelt e Churchill, mas estão mais próximos de Franco, Mussolini e há quem bote neles o bigodinho de Hitler.

Na verdade, essa guerra no Iraque é o conflito entre o pós-moderno (Bush) e o pós-antigo (Saddam). Ambos são um blefe, são pastiche. Assim como Bush pensa ser César, Saddam pensa ser Nabudonosor. Bush estupidificou a democracia. Saddam barbarizou a Mesopotâmia.

Outra característica da pós-modernidade é a “desterritorialização” dos indivíduos e povos. Pessoas e culturas perdem suas raízes e ficam num delírio deambulatório pelos shoppings e outros espelhos sem alma. E a globalização quer isto. Que sejamos todos um mesmo e único mercado. Pessoas convertidas em consumidores, a abolição da consciência crítica, a conversão de todos em objetos. Então, dando seqüência a essa ideologia, Bush acha que pode cortar as raízes de um povo que começou na Mesopotâmia, que teve em seu território a localização do Éden bíblico, da Torre de Babel, dos Jardins Suspensos da Babilônia, etc. Aí, você lê os jornais e vê os militares americanos, perplexos, dizendo: “Uai! Nos preparamos para lutar de um determinado jeito e esse povo aqui quer lutar de outro!”. Ou seja: você pega seus planos de guerra feitos nas salas de ar-refrigerado do Pentágono e quer que funcionem no deserto iraquiano. Nisto a ideologia americana está ilustrando um outro item da pós-modernidade, que ignora o “contexto” em favor de uma ingênua “descontextualização”. Acredita-se, como ocorre em alguns exemplos artísticos, que você pode “descontextualizar” um país e “recontextualizá-lo” ao seu modo. Ou, que podem chegar lá com uma “democracia” pronta, como um hambúrger, e isto vai descer pela goela iraquiana. Como diria Fredric Jameson, isto é acreditar que o conteúdo pode ser definitivamente suprimido em favor da forma, como se as culturas vivessem em livre flutuação. Daí a surpresa de outro soldado confessando que essa guerra não é o “passeio” que lhe prometeram, e que não é “tão fácil conquistar uma nação”.

Diante da “mãe de todas as bombas” — que lança fragmentos (e a fragmentação é outra irônica sindrome pós-moderna), estão os “homens-bomba”. A grande e a pequena fragmentação. A máquina e a impessoalidade contra o indivíduo e sua crença. A irracionalidade pós-moderna, versus a irracionalidade pós-antiga.

Por essas e por outras é que deveriam dar mais cursos de História, de antropologia e de arte contemporânea nos quartéis americanos. Uma das tolices do século XX foi, através de silogismos fascinantes, anunciar a morte da História, a morte da arte, a morte do homem. Pois a História está renascendo, a arte está renascendo, o homem está renascendo no cemitério de mortes anunciadas do finado século. Essa guerra, pelo avesso, pode ser a contestação e o princípio do fim da globalização e da cultura pós-moderna que se comprazem no pastiche, na repetição inócua, na valorização da quantidade sobre a qualidade, no culto à imagem e ao simulacro em detrimento do real. Essa pós-modernidade que descontextualiza as pessoas e desterritorializa as culturas.

Enfim, nessa batalha de textos e contextos, em que a pós-modernidade, autofagicamente, desmoraliza os próprios conceitos que cria, devo convir que talvez a pós-modernidade nem exista. Que, como disse o corajoso Michael Moore na festa do Oscar, estamos diante de um presidente fictício que crê numa guerra fictícia. Talvez a pós-modernidade realmente não exista. E embora eu tenha falado de um conflito entre o pós-moderno (Bush) e o pós-antigo (Saddam), essa guerra, como todas as guerras, insere-se mesmo é no pré-arcaico.

Publicado no GLOBO em 5 de abril de 2003

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Meu carro pára numa esquina da praia de Copacabana às 9h30m e vejo um velho vestido de branco numa cadeira de rodas olhando o mar à distância. Por ele passam pernas portentosas, reluzentes cabeleiras adolescentes e os bíceps de jovens surfistas. Mas ele permanece sentado olhando o mar à distância.

O carro continua parado, o sinal fechado e o estupendo calor da vida batia de frente sobre mim. Tudo em torno era uma ávida solicitação dos sentidos. Por isto, paradoxalmente, fixei-me por um instante naquele corpo que parecia ancorado do outro lado das coisas. E sem fazer qualquer esforço comecei a imaginá-lo quando jovem. É um exercício estranho esse de começar a remoçar um corpo na imaginação, injetar movimento e desejo nos seus músculos, acelerando nele, de novo, a avareza de viver cada instante.

A gente tem a leviandade de achar que os velhos nasceram velhos, que estão ali apenas para assistir ao nosso crescimento. Me lembro que menino ao ver um velho parente relatar fatos de sua juventude tinha sempre a sensação de que ele estava inventando uma estória para me convencer de alguma coisa.

No entanto, aquele velho que vejo na esquina da praia de Copacabana deve ter sido jovem algum dia, em alguma outra praia, nos braços de algum amor, bebendo e farreando irresponsavelmente e achando que o estoque da vida era ilimitado.

Teria ele algum desejo ao olhar as coxas das banhistas que passam? Olhando alguma delas teria se posto a lembrar de outros corpos que conheceu? Os que por ele passam poderiam supor que ele fazia maravilhas na cama ou nas pistas de dança?

Me lembra ter lido em algum lugar que o inconsciente não tem idade. Ah, sim, foi no livro de Simone de Beauvoir sobre “A velhice“. E ali ela também apresentava uma estatística segundo a qual por volta dos 60 anos poucos se declaram velhos; depois dos 80 anos, só 53% se consideram velhos, 36% acham que são de meia-idade e 11% se julgam jovens.

Não sei porque, mas toda vez que vejo um senhor de cabelos brancos andando pela praia penso que ele é um almirante aposentado. Às vezes, concedo e admito que ele pode ser também da Aeronáutica. Por causa disto, durante muito tempo, vendo esses senhores passeando pela areia e calçada, sempre achava que toda a Marinha e Aeronáutica havia se aposentado entre Leblon e Copacabana.

Mas esses senhores de short e boné branco que passam às vezes em dupla pelo calçadão, são mais atléticos que aquele que denominei de velho e, sentado na cadeira, olha o mar.

Ele está ali, eu no meu carro, e me dou conta que um número crescente de amigos e conhecidos tem me pronunciado a palavra “aposentadoria” ultimamente. Isto é uma síndrome grave. Em breve estarei cercado de aposentados e forçosamente me aposentarão. Então, imagino, vou passear de short branco e boné pelo calçadão da praia, fingindo ser um almirante aposentado, aproveitando o sol mais ameno das 9h30m até cair sentado numa cadeira e ficar olhando o mar.

Me lembra ter lido naquele estudo de Simone de Beauvoir sobre a velhice algo neste sentido: “Morrer, prematuramente, ou envelhecer: não há outra alternativa.” E, entretanto, como escreveu Goethe: “A idade apodera-se de nós de surpresa.” Cada um é, para si mesmo, o sujeito único, e muitas vezes nos espantamos quando o destino comum se torno o nosso: doença, ruptura, luto. Lembro-me de meu assombro quando, seriamente doente pela primeira vez na vida, eu me dizia: “Essa mulher que está sendo transportada numa padiola sou eu.” Entretanto, os acidentes contingentes integram-se facilmente à nossa história, porque nos atingem em nossa singularidade: velhice é um destino, e quando ela se apodera de nossa própria vida, deixa-nos estupefatos. “O que se passou, então? A vida, e eu estou velho”, escreve Aragon.

Meu carro, no entanto, continua parado no sinal da praia de Copacabana. O carro apenas, porque a imaginação, entre o sinal vermelho e o verde, viajou intensamente. Vou ter de deixar ali o velho e sua acompanhante olhando o mar por mim. Vou viver a vida por ele, me iludir que no escritório transformo o mundo com telefonemas, projetos e papéis. Um dia, talvez, esteja naquela cadeira olhando mar à distância, a vida distante.

Mas que ao olhar para dentro eu tenha muito que rever e contemplar. Neste caso não me importarei que o moço que estiver no seu carro parado no sinal imagine coisas sobre mim. Estarei olhando o mar, o mar interior e terei alegrias de nenhum passante compreenderá.

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Quatro pessoas, num mesmo dia, me dizem que vão fazer 30 anos. E me anunciam isto com uma certa gravidade. Nenhuma está dizendo: vou tomar um sorvete na esquina, ou: vou ali comprar um jornal. Na verdade estão proclamando: vou fazer 30 anos e, por favor, prestem atenção, quero cumplicidade, porque estou no limiar de alguma coisa grave.

Antes dos 30 as coisas são diferentes. Claro que há algumas datas significativas, mas fazer 7, 14, 18 ou 21 é ir numa escalada montanha acima, enquanto fazer 30 anos é chegar no primeiro grande patamar de onde se pode mais agudamente descortinar.

Fazer 40, 50 ou 60 é um outro ritual, uma outra crônica, e um dia eu chego lá. Mas fazer 30 anos é mais que um rito de passagem, é um rito de iniciação, um ato realmente inaugural. Talvez haja quem faça 30 anos aos 25, outros aos 45, e alguns, nunca. Sei que tem gente que não fará jamais 30 anos. Não há como obrigá-los. Não sabem o que perdem os que não querem celebrar os 30 anos. Fazer 30 anos é coisa fina, é começar a provar do néctar dos deuses e descobrir que sabor tem a eternidade. O paladar, o tato, o olfato, a visão e todos os sentidos estão começando a tirar prazeres indizíveis das coisas. Fazer 30 anos, bem poderia dizer Clarice Lispector, é cair em área sagrada.

Até os 30, me dizia um amigo, a gente vai emitindo promissórias. A partir daí é hora de começar a pagar. Mas também se poderia dizer: até essa idade fez-se o aprendizado básico. Cumpriu-se o longo ciclo escolar, que parecia interminável, já se foi do primário ao doutorado. A profissão já deve ter sido escolhida. Já se teve a primeira mesa de trabalho, escritório ou negócio. Já se casou a primeira vez, já se teve o primeiro filho. A vida já se inaugurou em fraldas, fotos, festas, viagens, todo tipo de viagens, até das drogas já retornou quem tinha que retornar.

Quando alguém faz 30 anos, não creiam que seja uma coisa fácil. Não é simplesmente, como num jogo de amarelinha, pular da casa dos 29 para a dos 30 saltitantemente. Fazer 30 anos é cair numa epifania. Fazer 30 anos é como ir à Europa pela primeira vez. Fazer 30 anos é como o mineiro vê pela primeira vez o mar.

Um dia eu fiz 30 anos. Estava ali no estrangeiro, estranho em toda a estranheza do ser, à beira-mar, na Califórnia. Era um homem e seus trinta anos. Mais que isto: um homem e seus trinta amos. Um homem e seus trinta corpos, como os anéis de um tronco, cheio de eus e nós, arborizado, arborizando, ao sol e a sós.

Na verdade, fazer 30 anos não é para qualquer um. Fazer 30 anos é, de repente, descobrir-se no tempo. Antes, vive-se no espaço. Viver no espaço é mais fácil e deslizante. É mais corporal e objetivo. Pode-se patinar e esquiar amplamente.

Mas fazer 30 anos é como sair do espaço e penetrar no tempo. E penetrar no tempo é mister de grande responsabilidade. É descobrir outra dimensão além dos dedos da mão. É como se algo mais denso se tivesse criado sob a couraça da casca. Algo, no entanto, mais tênue que uma membrana. Algo como um centro, às vezes móvel, é verdade, mas um centro de dor colorido. Algo mais que uma nebulosa, algo assim pulsante que se entreabrisse em sementes.

Aos 30 já se aprendeu os limites da ilha, já se sabe de onde sopram os tufões e, como o náufrago que se salva, é hora de se autocartografar. Já se sabe que um tempo em nós destila, que no tempo nos deslocamos, que no tempo a gente se dilui e se dilema. Fazer 30 anos é como uma pedra que já não precisa exibir preciosidade, porque já não cabe em preços. É como a ave que canta, não para se denunciar, senão para amanhecer.

Fazer 30 anos é passar da reta à curva. Fazer 30 anos é passar da quantidade à qualidade. Fazer 30 anos é passar do espaço ao tempo. É quando se operam maravilhas como a um cego em Jericó.

Fazer 30 anos é mais do que chegar ao primeiro grande patamar. É mais que poder olhar pra trás. Chegar aos 30 é hora de se abismar. Por isto é necessário ter asas, e sobre o abismo voar.

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O primeiro texto que publiquei em jornal foi uma crônica. Devia ter eu lá uns 16 ou 17 anos. E aí fui tomando gosto. Dos jornais de Juiz de Fora, passei para os jornais e revistas de Belo Horizonte e depois para a imprensa do Rio e São Paulo. Fiz de tudo (ou quase tudo) em jornal: de repórter policial a crítico literário. Mas foi somente quando me chamaram para substituir Drummond no Jornal do Brasil, em 1984, que passei a fazer crônica sistematicamente. Virei um escritor crônico.

O que é um cronista?

(mais…)

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